SUMARIO
Dois pontos apresentam luz intensa quando se trata de rever o trabalho do Supremo Tribunal Federal - STF no Brasil em 2017. De um lado, como é comum assinalar a cada ano em que se resenha a jurisprudência do STF, chocam os números de processos e decisões tomadas. De outro lado, em 2017, impressiona a participação da Corte no arbitramento de questões diversas surgidas no quadro da crise política em que o Brasil está imerso desde a descoberta de um massivo esquema de corrupção na política, que chegou a ocasionar, em 2016, o segundo caso de impeachment sob a vigência da Constituição de 1988.
Ao se considerarem os números de processos com que o Tribunal tem que lidar, a conclusão imediata é a de que a situação é insustentável e encaminha a Corte para uma crise de qualidade, com reflexos na legitimidade das deliberações, se nada for preparado para desviar a Corte do campo do absurdo em matéria de sobrecarga processual.
Em 2017, o Tribunal recebeu nada menos do que 103.650 processos. 113.634 processos (incluindo, portanto, estoques de outros anos) foram resolvidos por decisões monocráticas (i. e., decisões tomadas diretamente pelo relator do feito, sem serem levadas para uma das duas Turmas ou ao Plenário da Casa). Decisões tomadas por órgãos colegiados chegaram a pouco mais de 10 % desse volume de decisões monocráticas, foram 12.897. Se comparados esses valores com os de 2016, as decisões monocráticas cresceram em torno de 10 % e as colegiadas, caíram o mesmo percentual. Vale dizer que o Tribunal está tomando cada vez mais decisões em que um só ministro fala por toda a Corte.
Seria desafiador para a mais cândida credulidade imaginar que cada um desses mais de cento e dez mil processos tenha recebido detida análise por parte da Corte. Para dar conta de tamanho volume de serviço, os gabinetes dos onze ministros do Tribunal contam com populosa equipe de assessores e assistentes, que busca filtrar os casos mais relevantes. Os casos mais palpitantes, porém, têm registrado também considerável crescimento numérico, na medida em que, no Brasil, a consolidação democrática empurrou o Judiciário para o proscênio das lutas políticas e das disputas dos cidadãos contra os Poderes Públicos. Sob este último aspecto, é de se ter presente que a Administração Pública, nas esferas da União, dos Estados e dos Municípios, é um agente de enorme importância para captação da população de escolaridade média e superior do país. O serviço público é visto pela população instruída da classe média como meio de estabilidade financeira e profissional, além de ser um dos mais disputados e ansiados caminhos de ascensão social. As disputas pelo ingresso no serviço público, bem como pela manutenção do status obtido pelos que nele já se inseriram, no ambiente pós 1988, deságuam inevitavelmente no Judiciário – e chegam com força sumamente impactante no topo da estrutura judicial, no STF. Não à toa, boa parte dos esforços da Corte se destinam ao desate de questões funcionais.
Outro campo de atuação que drena a energia da Corte são questões de envergadura menos interessante para o público interessado no direito comparado, mas de forte impacto para as finanças do Estado, relacionadas com problemas de Previdência Social. Mesmo estando o STF fundamentalmente adstrito a questões de ordem constitucional, esses temas chegam ao Tribunal em grande volume, mercê da característica marcadamente analítica da Constituição brasileira, que se deixa interessar por pormenores que, em outros países, seriam deixados ao legislador ordinário.
A crise política que se prolonga desde o início da década, com picos periódicos de tensão e de estupor generalizado, também tem sua parcela de contribuição para o protagonismo na condução da vida pública a que o STF tem sido chamado a desempenhar nesses mesmos anos de forma inédita na História do país.
Concitado a intervir no mundo da política, não surpreende que o ano de 2017 também haja exposto divergências profundas entre os integrantes da Corte, no campo da interpretação da Carta da República em pontos cruciais para a harmonização de visões sobre direitos fundamentais, no plano dos conflitos com interesses de investigação de notícias de corrupção nas mais altas esferas da República. Essas discordâncias, por vezes vazadas em termos desprovidos de sutileza, tornam-se tanto mais graves e de difícil conciliação, na medida em que são manifestadas ao vivo, em tempo real, para todo o Território Nacional, por via televisiva.
Os julgamentos do Plenário do STF são levados ao público, sem cortes nem edições, todas as quartas e quintas-feiras, por intermédio do canal de televisão dedicado, há quase duas décadas, ao Poder Judiciário, sob a direção do STF. Ao contrário do que acontece em outras latitudes, no Brasil, os debates entre os Ministros nos julgamentos do colegiado completo (full bench), não ocorrem em câmara fechada, mas são abertos ao público, por determinação constitucional. A TV Justiça leva ao extremo o conceito de publicidade dos julgamentos do Plenário do STF. Em tempos de grande atração da Corte para o desate de conflitos políticos e até para a tomada de decisões que dividem a sociedade, era mesmo de se esperar o fenômeno que se agudiza a cada dia de a atenção da mídia se voltar maciçamente para cada palavra proferida pelos Ministros do Tribunal e para cada decisão televisionada da Corte.
As posições dos Ministros se tornam conhecidas da opinião pública e os próprios onze membros do Tribunal passam a ser objeto de apreciação pública, não tanto pela qualidade dos seus votos, mas sobretudo pela sua maior ou menor proximidade com as vontades coletivas do momento.
É ocioso ressaltar como isso acrescenta dificuldade ao trabalho de atuar, num ambiente de pressão popular, segundo padrões que o momento exija sejam contramajoritários. Em recente pronunciamento ao final de um julgamento transmitido pela TV Justiça, a Presidente da Corte, em tom de bom-humor, mas em linha com os fatos, se referiu ao fenômeno de, às vésperas da Copa do Mundo, no chamado país do futebol, a população conhecer pelo nome os Ministros do STF, mesmo que ainda não haja guardado de cor a escalação da Seleção brasileira.
A exposição constante dos Ministros do STF na mídia favorece situações únicas, vivenciadas fora do prédio da Corte, que vão da bizarrice ao sério risco à integridade física e mesmo à vida dos magistrados. Induz, da mesma forma, a que, em cada julgamento público, cada integrante da Corte se sinta compelido a concorrer para a solução com longas explanações, independentemente da sua importância técnica para a solução do processo.
Um mesmo processo pode levar mais de uma semana para chegar ao seu fecho e a redução a escrito dos votos proferidos se faz por catadupas de laboriosas manifestações individuais. Isso, numa Corte numericamente assoberbada, colabora para resultados que não transparecem a eficiência do sistema em vigor. Ainda ligado a esse fenômeno, pleitos de medidas acauteladoras do interesse público em processos variados e, sobretudo, no controle de constitucionalidade, que se esperava fossem resolvidos pela composição plena do Tribunal, não conseguem ser incluídos nas pautas de julgamento e terminam sendo enfrentados em decisões monocráticas – o que, diante da efervescência políticas de dados momentos, nem sempre contribui eficazmente para a pacificação social.
Num ano marcado por dramas políticos, o STF não foi poupado de sobre eles se deter, como se vê dos casos mais expressivos que se coligem a seguir.
Em um dos momentos de mais tensa relação entre o STF e o Senado Federal, por decisão monocrática, foi acolhido pedido do Procurador-Geral da República para que um dos mais conhecidos Senadores, investigado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e obstrução de justiça, fosse afastado das suas funções parlamentares, sendo obrigado a entregar o passaporte, vendo-se proibido de sair do país.
A providência causou mal-estar considerável e logo questionamentos a respeito de interferência do Judiciário sobre o Parlamento foram lançadas a público. Por vicissitudes processuais de pouco interesse para esta narrativa, o inquérito, porém, foi transferido da relatoria do Ministro que determinou as providências monocraticamente para outro, de outra Turma, que, houve por bem, também monocraticamente, cassar as medidas impostas. O Procurador-Geral da República recorreu dessa deliberação para a Turma, que, por maioria, em 26 de setembro de 2017, deu provimento ao inconformismo do Ministério Público Federal e restabeleceu as determinações constritivas anteriores, acrescendo mais uma, a de que o investigado se recolhesse em seu domicílio no período noturno. A decisão foi tomada pela Primeira Turma na AC 4.236 AgR-terceiro-AgR (DJe 27.10.2017). Argumentou-se que a Constituição protege o mandato do parlamentar, proibindo toda prisão provisória que não resulte de flagrante delito – hipótese em que, mesmo assim, a Casa a que pertence o parlamentar deve ser informada do fato em 24 hora, para resolver se mantém ou cassa a prisão. Como nenhuma das providências cogitadas na decisão tomada importava prisão, a Turma as considerou compatíveis com a garantia do mandato prevista no art. 53, § 2o, da Carta da República.
Uma nova onda de insatisfação agitou a Praça dos Três Poderes, logradouro de Brasília em que as sedes dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo se erguem. Argumentava-se, em prol do Senador atingido, que as medidas impostas interfeririam no seu desempenho como parlamentar, efeito, justamente, que o constituinte quis prevenir, ao proibir as prisões não definitivas. O acórdão havia sido proferido, entretanto, por Turma, percebeu-se que os desdobramentos políticos do caso tornariam de todo oportuna uma manifestação da totalidade da Corte. Nesse mesmo processo, porém, esse intuito não tinha mais como ser satisfeito, por não existir recurso para o Pleno da decisão que resolveu o agravo regimental. A dificuldade foi contornada quando se deu conta de que uma ação direta de inconstitucionalidade, que estava em curso desde o ano anterior, disputava interpretação análoga à da Primeira Turma.
A ADI 5526 estava pronta para ser incluída em pauta de julgamento e assim o foi. Em 11 de outubro de 2017, o Tribunal, por apertada maioria de 6 votos a 5, entendeu que possui competência para estabelecer medidas cautelares, diversas da prisão, nos feitos destinados a apurar responsabilidade criminal de parlamentar. Deve, decerto, respeitar a imunidade processual relativamente à prisão, expressa no art. 53, § 2o, da Constituição[2]. Deve também considerar, entretanto, para efeitos de consequências jurídicas próprias, a razão de ser dessa imunidade. A esse propósito, afirmou que “a ratio da norma constitucional é somente permitir o afastamento do parlamentar do exercício de seu mandato conferido pelo povo em uma única hipótese: prisão em flagrante delito por crime inafiançável”. A Corte acrescentou que:
A ratio da norma constitucional não pode ser contornada pela via das medidas cautelares diversas da prisão. Assim, ato emanado do Poder Judiciário que houver aplicado medida cautelar que impossibilite direta ou indiretamente o exercício regular do mandato legislativo, deve ser submetido ao controle político da Casa Legislativa respectiva, nos termos do art. 53, § 2º, da CF[3].
Por esse entendimento, as medidas cautelares que a Primeira Turma impôs aos Senador deveriam ser objeto de juízo de anuência ou de rejeição pelo Senado Federal. Isso era assim, já que elas obstavam que o Senador pudesse realizar viagens em representação do Senado, bem como impediam que exercesse as funções típicas parlamentares depois do cair da tarde. A suspensão total das suas funções, aditada, evidentemente tornava o implemento das medidas cautelares com maior razão sujeitas à revisão do Senado, segundo o entendimento que se formou na ação direta de inconstitucionalidade.
Pouco depois do julgamento do Plenário do STF, o Presidente do Senado dirigiu ofício à Corte, dando ciência de que, no dia 17 de outubro de 2017, a Casa Legislativa rejeitara a decisão da Primeira Turma, assinalando que a sessão deliberativa contou com a presença de 71 parlamentares, computando-se 44 votos pela rejeição das providências estabelecidas pela Primeira Turma contra 26 votos e nenhuma abstenção.
A decisão produziu efeitos replicantes nos Estados-membros, em que também deputados estaduais se viam às voltas com medidas cautelares de ordem processual penal. Abriu-se o debate sobre se esse mesmo entendimento relativo aos parlamentares federais não seria bom fundamento para que as Assembleias Legislativas nos Estados-membros também superassem afastamento de mandatos de origem judicial. O ano de 2017 não viu solução para o problema.
A chamada “operação lava-jato” entra definitivamente na História do país como a mais dilatada investigação de casos de corrupção nas mais altas esferas do Legislativo e do Executivo, bem como em partidos políticos e em grandes empresas, jamais conhecida no Brasil. A operação deixou ramificações até mesmo em outros países da América Latina. Um dos mais relevantes instrumentos empregados para o desenvolvimento das atividades da operação foi o da colaboração premiada, popularizada como delação premiada, pelo qual participantes de esquemas criminosos relatam a participação de superiores nessas empreitadas e apontam evidências nesse sentido, recebendo em troca tratamento mais benevolente no que tange à punição dos crimes que cometeu. O instituto é relativamente recente no combate à corrupção no Brasil, o que explica que ainda esteja rodeado de entusiasmos e perplexidades tanto nas críticas como nos encômios que atrai. Os pontos de dúvida vão sendo enfrentados pelo STF no calor do acompanhamento, por vezes apaixonado, da mídia.
Na PET 7074 (julgada em Plenário durante quatro sessões, a última das quais ocorrida em 29 de junho de 2017), o Tribunal reiterou entendimento fixado em 2016 sobre a natureza jurídica da colaboração premiada. Como decidido no HC 127.483/PR:
A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração.
Fixou-se, igualmente, que a homologação do acordo de colaboração premiada é atribuição do relator e, não, do tribunal como um todo, não obstante possa o relator submetê-la ao Pleno, se o desejar. No instante da homologação, o relator limita-se a desenvolver um juízo de delibação, em que perquire a legalidade, a regularidade e a voluntariedade pressupostas pelo acordo. A homologação, além disso, não envolve formulação de juízo de valor sobre as declarações do colaborador. Por isso mesmo, não se admite que terceiros, que não participaram da relação contratual, ajam para impugná-la, embora lhes seja franqueado, em juízo, desmentir as declarações do colaborador.
No precedente de 2016 também se disse: “Os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador”.
O Tribunal, em 2017, esclareceu, porém, que, no momento da decisão final do processo-crime, é dado à Corte rever o acordo, se verificar que o colaborador não cumpriu as obrigações que assumiu com o Ministério Público.
No ano de 2017, o Procurador-Geral da República apresentou uma segunda denúncia contra o Presidente da República por delitos relacionados com o desempenho do mandato. Pelo sistema constitucional brasileiro, o Presidente da República pode ser processado criminalmente nessas circunstâncias pelo STF, mas o recebimento da denúncia depende da anuência da Câmara dos Deputados, por 2/3 dos seus membros. Houve uma Questão de Ordem no INQ 4483 (DJe 13.6.2017), de que partiu a denúncia, envolvendo a qualidade da delação premiada em que embasada. Como não cabe ao Tribunal nenhum juízo anterior ao da Câmara dos Deputados sobre a acusação, não foi deferido o pedido de sustação do andamento da análise da denúncia no Parlamento[4]. O recebimento da denúncia, afinal, não recebeu a concordância da Câmara dos Deputados, o que paralisou o processo até o final do mandato do Presidente da República.
A jurisprudência do STF, por décadas, entendeu legítimo que as constituições estaduais dispusessem que os governadores somente seriam processados criminalmente pelo Superior Tribunal de Justiça em seguida a autorização do Poder Legislativo estadual[5]. Dava-se importância ao fato de que o recebimento da denúncia contra o Governador pelo Superior Tribunal de Justiça importaria o afastamento do Chefe do Executivo eleito pelo povo do Estado. A licença dada pelos representantes desse povo preveniria a situação de “destituição indireta” do Governador pelo tribunal federal, evitando o comprometimento da autonomia político-institucional do Estado-membro.
Essa jurisprudência sofreu reversão em 2017, quando foram julgadas ações diretas de inconstitucionalidade contra preceitos de constituições estaduais que explicitavam essa inteligência. Percebe-se que o Tribunal impressionou-se com o fato de que nenhuma Assembleia Legislativa estadual, durante o período, jamais deu autorização para o processo penal de um governador, sendo a praxe nem sequer responder ao pedido do STJ.
A jurisprudência anterior foi então explicitamente superada por maioria do Supremo Tribunal, em 3 de maio de 2017, no julgamento da ADI 5540/MG[6]. Prevaleceu o entendimento de que essa imunidade relativa seria antitética com o princípio republicano, especialmente no que tange à exigência de igualdade perante a lei, ao conferir tratamento privilegiado a quem deveria estar mais sujeito ao controle dos seus atos por sua condição de mandatário do povo. A situação de exceção, além disso, não teria apoio em disposição expressa da Constituição Federal para se legitimar. A condição de procedibilidade, ainda, envolve tema de direito processual penal, assunto para o qual o Estado-membro não é competente para normatizar. Por fim, o acórdão salientou que a condição interfere sobre o princípio da separação dos poderes, uma vez que subordina o exercício da jurisdição a um ato de vontade do Poder Legislativo. Restrição dessa sorte, que impede o Judiciário de exercer as suas competências, somente seria aceitável se houvesse disposição explícita na Constituição Federal a respeito.
Por outro lado, afirmou-se também que não se aplica ao Governador a regra da Constituição Federal específica para o Presidente da República, relativa ao afastamento automático do titular do Poder Executivo diante da admissão da ação penal. Firmou-se a inteligência de que o Superior Tribunal de Justiça haveria de apreciar, caso-a-caso, a necessidade de afastar o Governador do cargo durante o processo, mediante decisão fundamentada.
No conjunto das decisões monocráticas que provocaram acesas reações, em 18 de dezembro de 2018, foi concedida liminar comum para as AADPF 395 e 444, proibindo, em todo o país, a prática da condução coercitiva para oitiva, perante autoridade policial, de pessoa investigada por prática de crime. Essas conduções coercitivas foram de considerável relevância para a “operação lava-jato”, que delas se valeu por mais de 200 vezes, inclusive para ouvir ex-Presidente da República. A liminar sustentou que essa prática não tinha abono constitucional e seria antitética com o direito ao silêncio. Ao longo do primeiro semestre de 2018, porém, a decisão foi superada pelo Tribunal em composição plenária.
O constituinte originário desenhou para o federalismo brasileiro uma repartição tanto horizontal como vertical de competências. Estabeleceu a competência privativa da União para legislar sobre vasta temática, no pressuposto da vantagem na unificação dessas deliberações em todo o país. Em outros assuntos, estabeleceu um condomínio legislativo, em que tanto a esfera central como a local da Federação podem dispor. Neste último caso, porém, estatuiu uma sub-repartição. Quanto à competência legislativa concorrente, cabe à União dispor sobre princípios e normas-quadro, reservando-se aos Estados a especificação. Ante a inércia da União, ou para preencher vazios deixados pela legislação central, os Estados-membros são livres para também estabelecer normas gerais. Não são poucas, nem são de menor relevo prático, as polêmicas que o sistema engendra, como se vê dos julgados do ano de 2017 a seguir comentados.
Em 1995, a União editou lei (Lei nº 9.055), em que autorizou a extração, industrialização, utilização e comercialização do amianto, de variedade “crisotila”, com as restrições que estabeleceu.
O amianto é substância utilizada industrialmente, presente em telhas, por exemplo. Em torno dessa substância, porém, foram-se acumulando evidências do caráter maléfico para a saúde. Em 2007, o Estado de São Paulo, então, por lei, proibiu completamente o uso de produtos que contenham qualquer dos tipos de amianto. A lei paulista foi desafiada na ADI 3937, em que se argumentava que o tema era da competência legislativa concorrente da União e dos Estados-membros, uma vez que cogitava de defesa da saúde, do meio ambiente e de produção e consumo, temas confiados pelo art. 24 da Constituição à disposições normativas tanto do Estado como da União. Sendo assunto da competência corrente, caberia à União dispor sobre normas mais genéricas, e ela o teria feito, ao admitir a utilização, o consumo e a comercialização do amianto, atendidas certos condicionamentos. O ordenamento estadual não poderia dispor em sentido confrontante com a legislação federal nesse campo. Argumentou-se que foi isso precisamente o que aconteceu, quando o Estado de São Paulo terminou por proibir, sem exceção, o que a União admitia, sob certos cuidados. A norma do Estado de São Paulo seria, por esse raciocínio, inconstitucional.
O julgamento, em 24 de agosto de 2017, da ação direta em comento e de outras duas, versando a mesma temática (AADDI 3406 e 3470), foi precedido de audiências públicas, em que os riscos para a saúde resultante do contato com o amianto crisotila viram-se extensamente estudados. Diversos documentos sobre o produto foram juntados aos autos. Afinal, a Corte conferiu especial importância ao fato de a Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer (IARC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) qualificarem todas as modalidades de amianto como comprovadamente carcinogênicas, não havendo hipótese de uso seguro da fibra. Apurou-se, igualmente, que a substância não é biodegradável, tornando o material especialmente pernicioso ao meio-ambiente. Anotou-se, ainda, que, em 1995, quando da Lei federal nº 9.055, não havia no país material substituto para o amianto crisotila, situação diferente nos dias atuais.
Embora o Supremo Tribunal já houvesse, anos volvidos, julgado inconstitucional lei estadual que proibia a comercialização do amianto, desta vez, considerou que o consenso científico formado nos últimos tempos tornava inequívoco o caráter danoso para a saúde e para o meio ambiente do amianto crisotila. Se a lei era constitucional ao tempo em que editada, quando o grau de certeza científica sobre os males do produto ainda não era tão elevado, nos tempos atuais o progresso da ciência revela a incompatibilidade do manuseio do produto com os valores constitucionais que o Estado deve proteger. A lei federal, segundo o STF, tornara-se inconstitucional. Estaríamos, então, diante de hipótese de inconstitucionalidade superveniente da Lei nº 9.055. Ante a inconstitucionalidade da lei federal, não se haveria de se cogitar de bloqueio da competência supletiva estadual, sendo dado ao Estado deliberar o veto ao amianto como se deu na lei de São Paulo.
Houve, portanto, na ação direta de inconstitucionalidade um juízo incidental de inconstitucionalidade de outra lei, que não figurava como seu objeto. A tendência do Tribunal é no sentido de conferir a essa declaração de inconstitucionalidade incidental no âmbito do controle em tese os mesmos efeitos erga omnes das decisões proferidas nesta última modalidade de fiscalização. A questão apenas pende de pedido de modulação dos efeitos da declaração de invalidade da Lei nº 9.055/95.
Um dos problemas que apresentam dificuldades no campo da repartição de competências diz com o critério de apreciação da validade da lei que, a um tempo, pode ser vista como situada tanto no campo próprio da legislação privativa da União como no da competência concorrente.
Na ADI 2.030, julgada em 9 de agosto de 2017, o assunto foi novamente trazido à baila. Uma lei do Estado de Santa Catarina sobre procedimentos de controle de resíduos de embarcações, oleodutos e instalações costeiras foi arguida de inconstitucional, por tratar de direito marítimo e civil – assuntos da competência legislativa privativa da União, de acordo com o art. 22, I, da Constituição. O Estado legislara, entretanto, sob pressuposto outro, no de que se tratava de proteger o meio ambiente, o que integraria a matéria no âmbito da competência legislativa concorrente.
O STF entendeu que a polêmica haveria de ser resolvida a partir da busca do principal escopo do diploma. Por esse exercício, concluiu que o propósito básico do legislador dirigiu-se a tutelar o meio ambiente, cuidando de responsabilizar o agente que causa dano nessa área. A ação direta foi julgada improcedente.
A busca de critério para solucionar os casos em que o tema, objeto de legislação, pode ser classificado como de competência privativa ou concorrente ensejou outro acórdão, no RE 194.704, julgado em 29.6.2017. O decisório foi proferido por maioria de votos. Foi produzido num contexto em que o Tribunal, com resistências internas, pareceu pender por saída interpretativa que favoreça um mais amplo grau de atribuições para as entidades menores da Federação. Falou-se, no precedente, no critério da subsidiariedade para os casos acinzentados de sobreposição de competências.
O processo se referia a lei municipal que estabelecia limites de emissão de gases por veículos automotores no interior do perímetro urbano, com cominação de multa aos transgressores. Os termos da controvérsia opunham a competência privativa da União para legislar sobre trânsito à competência material dos Municípios para proteger o meio ambiente e combater a poluição, além da sua competência para dispor sobre assuntos de interesse local e para suplementar a legislação federal no que couber (art. 30, I e II, da CF).
Ficou vencida a tese de que, não obstante o óbvio interesse do Município em limitar emissão de gases e de resíduos sólidos, não haveria “nenhuma particularidade que, conferindo-lhe proeminência local, justificaria desatar competência legiferante para reger o assunto mediante tipificação de ilícito administrativo e imposição de multa” (voto vencido do Ministro Cezar Peluso).
A corrente majoritária, expressa no voto do Ministro relator para o acórdão (min. Edson Fachin), apontou para uma inquietação recente da jurisprudência da Corte com “a excessiva centralização de competências, a inviabilizar até mesmo a própria autonomia dos entes federativos”. Daí ter preconizado que o critério da preponderância de interesses deveria ser observado nesses casos de sobreposição de áreas de interesse, não segundo o do interesse de mais larga abrangência, mas de acordo com o do interesse indicado pelo princípio da subsidiariedade. Por esse padrão, “haveria uma primazia do interesse da localidade.” Resultou do raciocínio o juízo de validade da lei municipal. Afirmou-se importante “assegurar aos Estados certa dose de criação e experimentação legislativa, para que não figurem como meros espectadores do processo decisório”. Foi dito: “Tendo o município disposto sobre meio ambiente e proteção à saúde, a multa prevista pela Lei 4.253/85 é legitimada para a proteção ambiental, bem jurídico que, conquanto correlato, difere do que é protegido pelo Código de Trânsito Brasileiro. Assim, uma vez competente para instituir a penalidade, não há bis in idem, nem ofensa à Constituição”.
A inteligência predominante centrou-se na ideia de que “na ausência de norma federal que, de forma nítida (clear statement rule), retire a presunção de que gozam os entes menores para, nos assuntos de interesse comum e concorrente, exercerem plenamente sua autonomia, detêm Estados e Municípios, nos seus respectivos âmbitos de atuação, competência normativa”.
É de se aguardar para verificar se essa premissa de raciocínio haverá de se consolidar em outros casos específicos.
A demonstrar que o critério da subsidiariedade como vetor favorável ao legislador da entidade menor no contexto das esferas da Federação não pode ser visto como assentado. No mesmo ano de 2017, em 3 de dezembro, procedeu-se ao julgamento da ADI 750, em que se apresentavam sobrepostos temas de defesa do consumidor (competência concorrente) e de comércio interestadual (competência reservada à União).
Foi declarada a inconstitucionalidade de lei estadual que tornava obrigatória a aposição de rótulo em produtos alimentícios comercializados no Estado-membro (Rio de Janeiro), contendo diversas informações não requeridas na legislação federal[7].
A defesa da constitucionalidade do diploma estadual enfatizou que o legislador local atuou com “o fim exclusivo de proteger o direito dos consumidores de serem regularmente informados dos elementos que compõem os produtos anunciados”. A competência seria, portanto, de ordem concorrente, já que o objeto da norma era regular o consumo (art. 24, V, da CF). A tese vencedora por maioria centrou o problema no âmbito predominante da regulação do comércio interestadual (art. 22, VIII, da CF), da competência exclusiva da União.
É interessante notar que os votos vencedores, a começar pelo do relator, Ministro Gilmar Mendes, fizeram referência à posição adotada no RE 194.704, compartilhando a convicção de que se deve prestigiar o poder legiferante dos Estados-membros. Não obstante, esses votos terminaram por assumir que o critério para resolver sobreposição de competência deve ser o da preponderância do interesse de mais larga extensão territorial. Daí a fórmula encontrada pelo relator ao se referir à necessidade de “incentivar-se a atuação dos estados como verdadeiros laboratórios legislativos, bem como pensar-se no fortalecimento do chamado federalismo cooperativo, bastante defendido nos últimos tempos pelo Min. Edson Fachin”. Não por acaso, a votação se deu por maioria, estando entre os vencidos precisamente o Min. Fachin.
A argumentação do relator buscou fundamento auxiliar no dever dos entes federados de lealdade entre si e com a Federação como um todo. Disse:
Ressalto que cabe aos entes da Federação se comportar, no exercício de suas competências, com lealdade aos demais. É o que a doutrina alemã chama de Bundestreue (princípio da lealdade à Federação ou da fidelidade federativa) (...). Sua presença [do princípio da lealdade] silenciosa, não escrita, obriga cada parte a considerar o interesse das demais e o do conjunto. (...) [É] válido mencionar que, nos termos do lecionado por Christoph Degenhart, ao ser constatada aparente incidência de determinado assunto a mais de um tipo de competência, deve-se realizar interpretação que leve em consideração duas premissas: a intensidade da relação da situação fática normatizada com a estrutura básica descrita no tipo da competência em análise e, além disso, o fim primário a que se destina essa norma, que possui direta relação com princípio da predominância de interesses. (DEGENHART, Christoph. Staatsrecht, I, Heidelberg, 22a edição, 2006, p. 56-60).
Como se vê, encontrou-se, na verdade, outro fundamento para a tese de que a predominância do interesse deve reger a solução de casos de sobreposição de competências legislativas, na linha da jurisprudência firmada pela Corte desde o advento da Constituição de 1988. Isso se nota de forma cristalina no voto de adesão à maioria do Ministro Alexandre de Moraes, que invocou, como razão de decidir, a posição tradicional da jurisprudência, replicada no precedente, ao dizer:
O princípio geral que norteia a repartição de competência entre os entes componentes do Estado Federal brasileiro, portanto, é o princípio da predominância do interesse, tanto para as matérias cuja definição foi preestabelecida pelo texto constitucional, quanto em termos de interpretação em hipóteses que envolvem várias e diversas matérias, como na presente ação direta de inconstitucionalidade
A fórmula da concentração de competências no domínio da União, no Brasil, não pode ser desligada da raiz histórica do Federalismo entre nós. O Estado Federal, aqui, formou-se por descentralização do Estado unitário. Há uma cultura que resulta dessa circunstância e que contribui para a posição de proeminência prática do ente central da Federação. Causa imediata espécie no Brasil cogitar de variedade legislativa sobre assuntos mais relevantes para o brasileiro, bem diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, em que a Federação se deu por agregação de Estados antes soberanos. Se é parte da cultura americana aceitar como natural que o regime de proteção do consumidor ou de responsabilidade civil em geral seja diferente de Estado-membro para Estado-membro, acarretando a necessidade de as forças produtivas se acomodarem ao sistema de cada Estado, algo semelhante logo produz reação de desconforto, senão de rejeição no Brasil. Veja-se, a propósito, que um dos argumentos para se fulminar a lei estadual no precedente em comento consistiu justamente no imediato sentimento de impropriedade resultante da antevisão de que a legislação idiossincrática do Estado do Rio de Janeiro poderia ser incentivo para que cada unidade da Federação agisse da mesma forma, o que é presumido como indesejável:
Se esta Corte, agora, reconhecer a validade deste ato normativo, ao fundamento de que foi posta em favor do consumidor, então deverá tomar a mesma posição em relação a todos os outros estados que se aventurem a legislar sobre a matéria. Criaremos assim uma autorização para que tenhamos tantos rótulos quantos são os estados da Federação brasileira. Será mesmo que era esse o escopo da norma constitucional, ao reconhecer a competência estadual para proteção do consumidor?
Não há demérito em se reconhecer que o modelo de Federalismo no Brasil é tributário de uma cultura de confiança maior em soluções uniformes do que em normações locais acaso incoincidentes. Problema verdadeiro está em se forçar solução afeiçoada a peculiaridades históricas estrangeiras ao quadro de expectativas assentadas no Brasil sobre o papel das ordens central e locais no campo da disciplina das atividades do cotidiano do brasileiro. Ao fim do julgamento prevaleceu esta avaliação do relator: “No caso, parece-me evidente não haver justificativa plausível que autorize restrições às embalagens de alimentos comercializados no Estado do Rio de Janeiro. Há clara predominância de interesse federal a evitar limitações que possam dificultar o mercado interestadual”.
O precedente ainda apresenta interesse sob aspecto de técnica de controle de constitucionalidade em tese no Brasil. O Supremo Tribunal é firme no entendimento de que a questão de desate cabível na jurisdição constitucional é aquela que se apresenta como diretamente constitucional. Assim, se para se descobrir uma suposta inconstitucionalidade de um ato normativo é necessário o seu confronto com outro ato infraconstitucional, o problema não é visto como da alçada do STF. Essa jurisprudência é importante para que a competência do STF não avance sobre a jurisdição comum. Por isso mesmo, é pacífico não ser admissível a ação direta de inconstitucionalidade que se volta contra um decreto, ao argumento de que teria disposto em sentido contrário à lei que deveria regulamentar. Ainda que se pudesse ver aí uma hipótese de usurpação de competência legislativa pelo Executivo, o problema é visto, primariamente, como de legalidade do decreto.
No precedente, foi invocado contra o conhecimento da ação direta que a discussão não prescindia de comparar a lei estadual com a legislação federal que se ocupara da discriminação do que os rótulos de produtos alimentícios devem informar.
Quando se trata de deslindar questão sobre competência para legislar, em especial quando se está diante de competência legislativa concorrente, esse confronto prévio é inevitável, indistinguível da questão federativa em jogo. Daí haver dito o relator do acórdão:
Afasto a preliminar suscitada pelo Advogado-Geral da União no sentido de que o exame da constitucionalidade da lei ora impugnada passaria pelo seu cotejo com o Código de Defesa do Consumidor. Nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
(...) ao se tratar de acão direta fundamentada na eventual ocorrência de invasão de competência da União para legislar de forma geral sobre determinada matéria, é necessário que o Tribunal verifique a existência no ordenamento jurídico de atos normativos que tratem do assunto em questão, para depois concluir ou (1) pela inconstitucional superposição legiferante ou (2) pela ocorrência, no âmbito federal, de situação de vacuum legis autorizadora, nos termos do art. 24, §3o, da Constituição Federal, da atividade plena do Estado-membro enquanto perdurar tal circunstância” (ADI 3645/PR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 31.5.2006). O foco da analise refere-se, portanto, às regras constitucionais de repartição da competência legislativa e não ao exame da validade dos atos impugnados em face da legislação apontada (ADI 3098, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 10.3.2006; ADI 2656, Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. em 8.5.2003).
Assuntos imbricados com disposições da Carta da República sobre direitos fundamentais sempre apresentam destaque na jurisprudência de cada ano do STF. Algumas dessas decisões são referidas nos próximos parágrafos.
Um dos casos que bem ilustra problemas da importação sem filtro de modelos estrangeiros em tema de direitos fundamentais pode ser identificado na ADI 4.439, que o Supremo Tribunal Federal julgou em 27 de setembro de 2018.
A ação fora proposta insurgindo-se contra dispositivo do Acordo Brasil-Santa Sé, de 2008, que dispõe: “O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação”.
Em não poucos sistemas constitucional conhecidos pelo direito comparado, provavelmente o dispositivo seria visto como antagônico a uma posição ideada de alheamento do Estado ao fenômeno religioso. A postura dos Poderes Públicos diante da prática religiosa, entretanto, não encontra um padrão único e abstrato, devendo ser conhecido no contexto das peculiaridades de cada ordem constitucional, em conformidade com as opções que o constituinte originário haja eleito.
No caso brasileiro, a Constituição estatui, no art. 210, § 1o: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.
Não pode haver dúvida, assim, sobre a legitimidade do ensino religioso fornecido por escolas mantidas pelo Estado. A Procuradoria-Geral da República, que propôs a demanda, sustentou, não obstante, que a laicidade do Estado imporia que o ensino religioso não fosse de caráter confessional, como foi previsto no Acordo Brasil-Santa Sé.
Não faz sentido, porém, entender o ensino religioso como atividade acadêmica destituída do propósito de exposição e demonstração dos fundamentos de alguma crença existente. Não fosse assim, não haveria por que o constituinte se dar ao cuidado de estabelecer que o ensino religioso é “de matrícula facultativa”. Ensino religioso não se confunde, diante dos termos explícitos da Constituição, com sociologia das religiões. Nesse sentido, o STF afinal decidiu que é mesmo confessional o ensino religioso previsto no art. 210, § 1º, da CF, ao julgar a ADI 4.439, em 31.8.2017.
O tema da relação entre instituições religiosas e os Poderes Públicos foi ali amplamente discutido. A corrente que rejeitou a impugnação ao ensino religioso confessional em escolas públicas assentou que o princípio da laicidade não se confunde com laicismo, e que a neutralidade estatal não pode vir a ser confundida com indiferença, não sendo absoluta a separação entre o Estado brasileiro e a Igreja. Por isso mesmo que da liberdade de expressão religiosa resultam também exigências de condutas positivas por parte do poder público que se orientem a assegurá-la. Ficou claro que não se pode negligenciar a dimensão pública da religião e que “a separação entre Igreja e Estado não pode, portanto, implicar o isolamento daqueles que guardam uma religião à sua esfera privada” (voto do Ministro Edson Fachin), tampouco cabe ao Estado escolher que partes da religião serão ministradas, não podendo agir como censor de doutrinas religiosas. Enfim, o Estado não pode negar o ensino religioso a quem o desejar.
Na ementa do acórdão, publicado no DJe de 21.6.2018, constam estas passagens expressivas:
A singularidade da previsão constitucional de ensino religioso, de matrícula facultativa, observado o binômio Laicidade do Estado (CF, art. 19, I)/Consagração da Liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), implica regulamentação integral do cumprimento do preceito constitucional previsto no artigo 210, §1º, autorizando à rede pública o oferecimento, em igualdade de condições (CF, art. 5º, caput), de ensino confessional das diversas crenças.
A Constituição Federal garante aos alunos, que expressa e voluntariamente se matriculem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa e baseada nos dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como história, filosofia ou ciência das religiões.
(...)
O binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade religiosa está presente na medida em que o texto constitucional (a) expressamente garante a voluntariedade da matrícula para o ensino religioso, consagrando, inclusive o dever do Estado de absoluto respeito aos agnósticos e ateus; (b) implicitamente impede que o Poder Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um determinado conteúdo estatal para a disciplina; bem como proíbe o favorecimento ou hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas de um ou mais grupos em detrimento dos demais.
Ao final, a ação direta foi julgada improcedente.
A nacionalidade é tratada pela Constituição brasileira no título dos direitos fundamentais. A Carta filia-se à melhor doutrina que vê a nacionalidade como direito fundamental de central relevo para o indivíduo nas relações com o Estado. A perda da nacionalidade é tema de não menor tomo, dadas as repercussões sobre a titularidade de tantos outros direitos fundamentais. A Constituição brasileira prevê os casos em que o brasileiro perde a nacionalidade. Isso pode decorrer do cancelamento da naturalização, “por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional” ou se é “adquirida outra nacionalidade”. Nesta última hipótese, a nacionalidade brasileira não é perdida se (1) a estrangeira houver sido reconhecida em caráter originário ou se (2) o brasileiro teve que adquirir a nacionalidade estrangeira como condição para continuar no Estado estrangeiro ou para ali exercer os direitos civis (art. 12, § 4o, I e II).
A Constituição institui como garantia fundamental do brasileiro nato não ser extraditado (art. 5o, LI) e foi com apelo a este preceito que a extraditanda, na Extr 1462, julgada em 28 de março de 2017, se opôs ao pedido formulado pelos Estados Unidos. A Primeira Turma do STF, entretanto, concedeu a extradição da brasileira, porque ela havia adquirido nacionalidade americana e porque se achavam preenchidos os pressupostos do Tratado específico regulador do mecanismo de cooperação internacional.
A defesa arguira que, não obstante a aquisição da nacionalidade americana, a condição de brasileira nata não poderia ter sido atingida pelo ato, na forma da ressalva estabelecida no art. 12, § 4o, II, da Constituição.
Apurou-se, todavia, que a extraditanda já era portadora de documento americano – o green card – que a habilitava a residir indefinidamente e a exercer direitos civis básicos, como o de trabalhar, independentemente de ser estrangeira nos EUA. O pressuposto para a ressalva à perda da nacionalidade brasileira previsto no art. 12, §4o, II, da Constituição, portanto, não se aperfeiçoara. A perda da nacionalidade, que já havia sido declarada no âmbito do Ministério da Justiça e foi considerada como bastante para subtrair o caso da garantia conferida aos brasileiros natos contra a extradição.
O art. 1790 do Código Civil dispõe sobre a sucessão do que vivia em união estável de uma forma diferente da sucessão do que era casado (art. 1829 do Código Civil). Arguindo que o cônjuge é melhor aquinhoado do que o companheiro e que isso traduziria discriminação odiosa, a questão da constitucionalidade do primeiro dispositivo foi encaminhada ao debate do Plenário do STF em 10 de maio de 2017, quando se julgou o RE 878694 (DJe 6.2.2018), sob o regime da repercussão geral.
Por maioria, o Tribunal seguiu o voto do relator, para quem a desequiparação do regime sucessório da união estável com relação ao casamento importa demérito para aquela e preferência indevida para este. Consta da manifestação do relator a assertiva de que “a Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável”. Entendeu que havia, na diferenciação, “discriminação contra o companheiro sobrevivente da união estável e que, dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), [o art. 1790] entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso”.
A proibição do retrocesso foi invocada, porque, sob regime anterior, o companheiro herdava melhor. A dignidade da pessoa humana foi invocada sem maiores justificativas precisas. O fundamento precípuo parece ter sido o de que a igualdade entre entidades familiares havia sido ofendida, na medida em que a opção legislativa expressaria hierarquização entre elas, com preferência para o casamento. A máxima de julgamento que foi extraída do precedente para se impor ao resto do Poder Judiciário veio a ser deduzida com estes dizeres: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.
O Tribunal evidenciou-se cioso da equiparação em seus desdobramentos jurídicos do casamento com a união estável, enxergando na diversidade de regramentos sucessórios atentado contra a igual dignidade que afirmou existir entre as formas de constituição de família previstas na Constituição.
O ímpeto por valorizar a união estável deixou para os votos vencidos fundamentos convincentes, senão mais próximos do princípio da autonomia da vontade, que, afinal, está no cerne da proteção da dignidade da pessoa.
Os votos vencidos assinalaram que a diferença de tratamento para os bens deixados em herança não despojam o companheiro da possibilidade de herdar e que cabe ao legislador regular o regime de sucessão com boa margem de discricionariedade política. Sendo a união estável realidade jurídica diferente do casamento, não haveria por que impor o mesmo regramento sobre a sucessão de quem optara pelo casamento. A escolha por se casar ou se manter como companheiro há de levar em conta as normas jurídicas que revestem um e outro instituto jurídico. Pode parecer ao companheiro melhor que a sua sucessão siga o regime da união estável do que o do casamento. Impor o mesmo regime do casamento ao que prefere manter união estável não é respeitar o seu direito de escolha entre as modalidades de constituição de família. Além disso, até mesmo no campo do casamento, há modalidades distintas de tratamento sucessório conforme o regime jurídico de bens adotado pelo casal. O voto vencido do Ministro Dias Toffoli expõe essa inteligência com estas palavras:
O casamento, portanto, não é união estável, o que autoriza que seus respectivos regimes jurídicos sejam distintos. Portanto, há de ser respeitada a opção feita pelos indivíduos que decidem por se submeter a um ou a outro regime. Há que se garantir, portanto, os direitos fundamentais à liberdade dos integrantes da entidade de formar sua família por meio do casamento ou da livre convivência, bem como o respeito a autonomia de vontade para que os efeitos jurídicos de sua escolha sejam efetivamente cumpridos.
O Ministro concluiu não enxergar nos fundamentos adotados pelo legislador para o tratamento diferenciado nenhuma “inferiorização de um instituto em relação ao outro, ou deliberada criação de uma situação desavantajosa. O legislador cuidou de dar a eles tratamento diferenciado, até para que não houvesse a equiparação entre os regime dos dois institutos”.
Outro voto vencido, do Ministro Marco Aurélio, também insistiu em que o casamento e a união estável não precisam ser tratados juridicamente de modo igual, sob o pretexto de respeitar o princípio da isonomia. A diferença entre eles ressai já do fato de o constituinte, ao se referir à união estável, determinar que deve “a lei facilitar a sua conversão em casamento.” (art. 226, §3o). Há passagens de considerável poder persuasivo no voto proferido que merecem ser ressaltadas:
O comando determina ao legislador facilitar a conversão da união estável em casamento, mas em momento algum os equipara. Se o fizesse, perderia a razão de ser a sinalização ao estímulo à transmutação da união estável em casamento. Para que a transformação ante igualização, quanto a consequências patrimoniais? A única similitude entre os institutos é que ambos são considerados, pelo Texto Maior, entidades familiares. E para por aí, uma vez que, mesmo sendo formas de família, a Constituição Federal estabelece, de plano, inexistir espaço para equalização.
É importante a advertência para os limites da interpretação pelo STF que o voto apontou:
Presentes as balizas constitucionais, o Código Civil, bem ou mal, disciplinou tratamentos jurídicos correspondentes, não cabendo ao intérprete substituir a opção do legislador para igualá-los, onde a Carta da República não o fez.
Trata-se de institutos díspares, com regimes jurídicos próprios, especialmente no âmbito patrimonial. Inexiste campo para potencializar a união estável, sob risco de suplantar o próprio casamento e os vínculos dele decorrentes.
Concordamos com o autor que não houve equiparação. Embora todas as entidades familiares mereçam proteção, isso não significa que devam ser tratadas exatamente da mesma maneira.
Em outro tópico, o voto relata em que o regime de sucessão do companheiro difere daquele do cônjuge e expõe não haver desarrazoabilidade na escolha do legislador:
A sucessão do companheiro, destarte, não pode ser considerada menos ou mais vantajosa, por exemplo, pelo fato de que ele herda dos bens adquiridos a título oneroso durante a convivência, ao passo que o cônjuge herda dos bens particulares do falecido. Tudo dependerá do modo como o patrimônio foi conquistado. O legislador, ao regulamentar a sucessão na união estável, adotou um critério diferente do utilizado para o casamento: neste, o propósito foi não deixar o cônjuge desamparado, quando não tivesse direito à meação, naquela, foi permitir que o companheiro herdasse apenas do patrimônio para cuja aquisição tenha contribuído. São critérios diversos, sem dúvida, mas não necessariamente melhores ou piores entre si.
Tampouco o argumento da proibição do retrocesso parece superar a réplica, constante do voto do Ministro Dias Toffoli, ordenada com a melhor doutrina, no sentido de que “a proibição do efeito catraca ou cliquet tem aplicação somente quando a restrição ao direito fundamental ultrapassa o limite de seu núcleo essencial, o que não é a hipótese em questão”. Há hipótese é, antes, de acolhimento da solução dada pelo legislador democrático, diante da pluralidade de alternativas que surgem dos marcos constitucionais.
Uma outra vertente crítica do acórdão deve salientar, ainda, que, mesmo sem o explicitar, o Tribunal valeu-se da problemática técnica da decisão manipulativa aditiva. Se a inconstitucionalidade estava no tratamento desigual entre companheiro e cônjuge no direito de sucessão, e uma vez que não se atacou como intrinsecamente injusto o regime de sucessão indicado pelo legislador para a união estável, a escolha que prevaleceu - de estender à união estável o regime de sucessão do casamento - não era a única politicamente viável. Se o STF entende ser necessário um regime jurídico comum ao casamento e à união estável não há por que excluir a hipótese de que o regime desta última se estenda para o casamento ou que o legislador haja por bem conferir novo desenho normativo para ambos. A decisão parece investir, assim, sobre o espaço próprio do legislador democrático.
Em 2006, o STF julgou recurso em mandado de segurança em que um cidadão, estudioso do período do regime militar no Brasil, dizendo estar preparando um livro em homenagem aos advogados de defesa da época, pretendia acesso ao material fonográfico dos julgamentos realizados nos anos 1970 pelo Superior Tribunal Militar – STM, que continuou a existir depois da vigente Constituição de 1988.
No RMS 23036 (julgado em 28.3.2006), o STF decidira que “a coleta de dados históricos a partir de documentos públicos e registros fonográficos, mesmo que para fins particulares, constitui-se em motivação legítima a garantir o acesso a tais informações”.
Ocorre que o STM apenas franqueou o acesso ao material de áudio relativo às então chamadas sessões públicas, negando o material relativo às sessões secretas. Na Rcl 11.949, julgada em 15.3.2017, o Tribunal entendeu que a resistência da Corte militar infringia a ordem que o STF deferira anos antes. O acórdão disse:
O direito à informação, a busca pelo conhecimento da verdade sobre sua história, sobre os fatos ocorridos em período grave contrário à democracia, integra o patrimônio jurídico de todo cidadão, constituindo dever do Estado assegurar os meios para o seu exercício. A autoridade reclamada deve permitir o acesso do Reclamante aos documentos descritos no requerimento administrativo objeto da impetração, ressalvados apenas aqueles indispensáveis à defesa da intimidade e aqueles cujo sigilo se imponha para proteção da sociedade e do Estado, o que há de ser motivado de forma explicita e pormenorizada pelo Reclamado, a fim de sujeitar a alegação ao controle judicial.
Por mais de uma oportunidade, nos últimos anos, o STF tem enfrentado a questão das repercussões jurídicas da precariedade dos estabelecimentos que recebem a população condenada criminalmente ou presa provisoriamente. Já se chegou a proclamar um estado de coisas inconstitucional nesse setor. No RE 580.252, julgado sob o regime de repercussão geral (que obriga os demais tribunais a seguir o entendimento do STF) em 16 de fevereiro de 2017 (DJe 11.9.2017), a Corte assegurou ao preso em condições inumanas o direito de receber indenização pecuniária pelos danos morais e materiais que haja sofrido. Ao longo do julgamento, integrantes do Tribunal chegaram a propor que, em vez de indenização pecuniária, fosse assegurado ao preso um abatimento da sua pena. A proposta foi recusada pela maioria, que viu na proposta uma medida que não poderia ser implementada à falta de lei que a previsse e por falta de pedido do autor da ação nesse sentido.
Da mesma forma, foi recusado o argumento do Poder Público de que a indenização estaria obstada pelo princípio da reserva do possível. Assentou-se que “o Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto permanecerem detidas. É seu dever mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir danos que daí decorrerem”. A obrigação do Estado no campo da responsabilidade civil, porque decorre diretamente do art. 37, §6o, da Constituição[8], norma auto-aplicável, não demandaria intermediação legislativa ou administrativa que justificasse a invocação do princípio da reserva do possível. Foi dito, igualmente, que a teoria da reserva do possível deixa de ser pertinente quando confronta pretensão de observância do mínimo existencial. Esse mínimo existencial foi delineado no voto do Ministro decano da Corte, Ministro Celso de Mello, com estas palavras:
A noção de mínimo existencial, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1o, III, e art. 3o, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação, o direito à segurança e o direito de não sofrer tratamento degradante e indigno quando sob custódia do Estado.
O Tribunal redigiu, afinal, a seguinte máxima de julgamento, que deve ser adotada por todos os demais órgãos do Judiciário:
Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.
A Constituição impõe a pena de confisco ao proprietário de terras em que se cultivam ilegalmente plantas psicotrópicas. O art. 243 dispõe que:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
No RE 635336, julgado em regime de repercussão geral, e publicado no Diário de Justiça eletrônico de 15.9.2017, a Corte se defrontou com a questão de definir o regime de responsabilidade do proprietário nesses casos. O proprietário teria que ter agido com culpa para sofrer o confisco? A sua responsabilidade seria objetiva?
Essas perplexidades foram resolvidas a partir da noção de que a expropriação, aí, possui cariz sancionatório, pressupondo, portanto, culpa do expropriado; dada a opção do constituinte, entretanto, o ônus da prova é de ser invertido. Assim, descoberto o plantio ilícito na propriedade de alguém, a ele incumbe demonstrar que não agiu com culpa, se quiser se livrar da constrição. A tese afinal fixada recebeu esta fórmula: “A expropriação prevista no art. 243 da CF pode ser afastada, desde que o proprietário comprove que não incorreu em culpa, ainda que in vigilando ou in elegendo”.
O Supremo Tribunal deu continuidade à sua jurisprudência de apoio a medidas legislativas de ação afirmativa em favor da população negra na modalidade das cotas.
Em 8 de junho de 2017, julgou por unanimidade, na ADC 41, válida lei federal de 2014 que reserva aos negros 20 % das vagas em concurso público para provimento de cargos efetivos nos três Poderes federais. O cotejo da medida com o princípio da igualdade foi realizado pelo relator, que estimou, então, não haver inconstitucionalidade a ser reparada. O fato de já haver política de cotas para o ingresse em universidades públicas tampouco foi considerado óbice para o acolhimento da opção legislativa. O acórdão buscou ser didático, indicando três fundamentos para a deliberação:
1.1. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente. 1.2. Em segundo lugar, não há violação aos princípios do concurso público e da eficiência. A reserva de vagas para negros não os isenta da aprovação no concurso público. Como qualquer outro candidato, o beneficiário da política deve alcançar a nota necessária para que seja considerado apto a exercer, de forma adequada e eficiente, o cargo em questão. Além disso, a incorporação do fator “raça” como critério de seleção, ao invés de afetar o princípio da eficiência, contribui para sua realização em maior extensão, criando uma “burocracia representativa”, capaz de garantir que os pontos de vista e interesses de toda a população sejam considerados na tomada de decisões estatais. 1.3. Em terceiro lugar, a medida observa o princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão. A existência de uma política de cotas para o acesso de negros à educação superior não torna a reserva de vagas nos quadros da administração pública desnecessária ou desproporcional em sentido estrito. Isso porque: (i) nem todos os cargos e empregos públicos exigem curso superior; (ii) ainda quando haja essa exigência, os beneficiários da ação afirmativa no serviço público podem não ter sido beneficiários das cotas nas universidades públicas; e (iii) mesmo que o concorrente tenha ingressado em curso de ensino superior por meio de cotas, há outros fatores que impedem os negros de competir em pé de igualdade nos concursos públicos, justificando a política de ação afirmativa instituída pela Lei n° 12.990/2014.
No Brasil, onde a miscigenação é frequente, há outro embaraço a ser enfrentado quando se fala em política de cotas por origem étnica. Nem sempre é fácil definir quem é negro ou branco. Tem-se adotado o critério da autodeclaração, admitindo-se como negro quem assim se considera. A perspectiva de fraudes no contexto das políticas de ação afirmativa levou a uma conjugação desse critério com o da avaliação por terceiros, em casos menos nítidos. Essa fórmula foi endossada pelo STF no precedente, que redundou na seguinte tese:
É constitucional a reserva de 20 % das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
O STF foi extensamente demandado no ano de 2017, tendo sido concitado a atuar em espaços que a crise política do período encurtou para os seus protagonistas habituais. A visibilidade do Supremo Tribunal ganhou proporções inauditas. Os integrantes da Corte tornaram-se pessoas de convivência diária da população, que os viram repetidamente nos noticiários e em programas de televisão. Cenas incomuns de apoio ou de repúdio a deliberações tomadas pelos Ministros acabaram por envolvê-los em episódios de ataques pessoais senão bizarros, decerto que deseducados e constrangedores. Não há dúvida de que a atuação do STF em 2017 foi marcante para a História da jurisdição e do próprio país.
A inserção do Supremo Tribunal no campo das decisões polêmicas atraiu, como não poderia deixar de ser, antagonismos e insatisfações com maior ou menor ponderação lógica-jurídica. O certo é que o Tribunal não pode ser acusado de haver faltado quando chamado a atuar, na medida em que a sobrecarga de trabalho o permitiu.
[1] |
Professor do Programa de Mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Membro do Ministério Público Federal. |
[2] |
“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. (...) § 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”. |
[3] |
Cf. Informativo STF n. 881, 9 a 13 de outubro de 2017. |
[4] |
Processo penal. Acordo de colaboração premiada. Possibilidade de rescisão ou de revisão total ou parcial. Sustação de oferecimento de denúncia contra o presidente da República na Suprema Corte. Descabimento. Análise de teses defensivas pelo stf. Impossibilidade. Precedência do juízo político de admissibilidade pela Câmara dos Deputados. Inteligência dos arts. 51, Inciso i, e 86, da crfb. Precedentes. Eventual descumprimento de cláusulas dos termos do acordo. Possibilidade de rescisão total ou parcial. Efeitos limitados às partes acordantes. Precedentes. 1. O juízo político de admissibilidade por dois terços da Câmara dos Deputados em face de acusação contra o presidente da República, nos termos da norma constitucional aplicável (CRFB, art. 86, caput), precede a análise jurídica pelo Supremo Tribunal Federal, se assim autorizado for a examinar o recebimento da denúncia, para conhecer e julgar qualquer questão ou matéria defensiva suscitada pelo denunciado. Precedentes. 2. A possibilidade de rescisão ou de revisão, total ou parcial, de acordo homologado de colaboração premiada, em decorrência de eventual descumprimento de deveres assumidos pelo colaborador, não propicia, no caso concreto, conhecer e julgar alegação de imprestabilidade das provas, porque a rescisão ou revisão tem efeitos somente entre as partes, não atingindo a esfera jurídica de terceiros, conforme reiteradamente decidido pelo Supremo Tribunal Federal. |
[5] |
Nesse sentido, HC 159.230, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ de 10-6-1994; HC 80.511, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 14-9-2001; HC 86.015, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 14-9-2001. |
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O novo entendimento foi seguido nas AADDI 4.777, 4.674 e 4.362, julgadas em 9-8-2017. Estabeleceu-se que “é vedado às unidades federativas instituírem normas que condicionem a instauração de ação penal contra governador por crime comum à prévia autorização da casa legislativa, cabendo ao STJ dispor fundamentadamente sobre a aplicação de medidas cautelares penais, inclusive o afastamento do cargo”. |
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Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Repartição de competências. Lei 1.939, de 30 de dezembro de 2009, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a obrigatoriedade de informações nas embalagens dos produtos alimentícios comercializados no Estado do Rio de Janeiro. Alegação de ofensa aos artigos 22, VIII, e 24, V, da Constituição Federal. Ocorrência. Ausência de justificativa plausível que autorize restrições às embalagens de alimentos comercializados no Estado do Rio de Janeiro. Competência legislativa concorrente em direito do consumidor. Ausência. Predominância de interesse federal a evitar limitações ao mercado interestadual. Ação julgada parcialmente procedente. |
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“§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. |