SUMARIO
Mais uma vez, em 2018, contam-se na casa das dezenas de milhares as decisões tomadas, no período de um ano, pelo Supremo Tribunal Federal - STF A grande maioria delas foi proferida fora da estrutura colegiada da Corte, uma vez que se admite que o Ministro relator atue sozinho, em nome de todo o Tribunal, quando se defronta com tema meramente processual de admissibilidade de ação ou de recurso ou quando o assunto agitado já foi resolvido em outra oportunidade. No apanhado que se segue, reportamos algumas deliberações das Turmas ou do Plenário que podem ser do interesse do cultor do Direito Comparado.
Observa-se que a jurisprudência do STF tem-se inclinando por expandir entendimento formulado em 2009, em processo de controle abstrato, no sentido de que a Lei de Imprensa anterior ao regime constitucional de 1988, restritiva da liberdade de expressão, não foi recebida pela nova ordem (ADPF 130, j. 30.4.2009). O precedente foi marcante para a fixação do âmbito de proteção da liberdade de expressão, sobretudo no campo da liberdade de imprensa lato sensu. O acórdão[2] do STF, entretanto, está repleto de obter dicta, tornando custosa a tarefa de definir exatamente o que a Corte tem por definido a respeito de diversos problemas específicos, sobretudo nos casos em que o direito de expressão conflita com direitos de personalidade. Por meio de reclamações —instrumento processual destinado a promover o respeito das demais instâncias judiciais ao magistério do STF—, os interessados veem testando o Supremo Tribunal, para verificar até que ponto de vinculatividade chegam as declarações da Corte sobre a supremacia prima facie dos direitos a livre expressão.
Na Rcl 28.747, DJe 12.11.2018, a Primeira Turma enfrentou caso em que juiz de primeira instância havia determinado a supressão de matéria jornalística publicada em blog na Internet. A autora da ação, uma Delegada da Polícia Federal, sustentava que a publicação era injuriosa à sua honra. A reportagem dizia que a agente pública vazava informações sigilosas no campo da maior operação anticorrupção jamais conhecida no Brasil, a Operação Lava Jato.
O relator da reclamação rejeitou a demanda, porque a questão específica da consequência jurídica da publicação acaso injuriosa não havia sido objeto de debate na ADPF 130. Ficou vencido, entretanto, prevalecendo o entendimento de que o Tribunal podia conhecer de ações apreciadas em primeira instância, desde que envolvesse “conflitos entre liberdade de expressão e informação e a tutela de garantias individuais como os direitos de personalidade”. Adotou-se, afinal, o entendimento de que a ordem judicial de subtração da matéria devia ser cassada. Mencionou-se que “o interesse público no conteúdo de reportagens e peças jornalísticas reclamam tolerância quanto a matérias de cunho supostamente lesivos à honra dos agentes públicos”.
O acórdão apontou que a medida apropriada para reparação do eventual abuso seria o direito de resposta, mas não a imediata supressão do texto, “antes mesmo de qualquer apreciação mais detida quanto ao seu conteúdo e potencial lesivo”. Repara-se, neste passo, uma certa hesitação do Supremo Tribunal em afirmar que, em qualquer situação, deve ser mantido o texto de alegado propósito informativo. Nessa passagem, a Turma deixa perceber que, embora não admitisse que uma medida liminar impusesse a suspensão da publicação da matéria, era ainda dado especular sobre se uma sentença de mérito poderia impor a providência. De toda sorte, a Turma deixou nítido que o ônus da prova de que a matéria é falsa e injuriosa recai sobre o inconformado com o texto. A ele, segundo se deduz da argumentação do acórdão, cabe demonstrar que o jornalista agiu sem diligência na apuração dos fatos ou com dolo. Daí, o acórdão ter dito que “não se evidencia de plano (ainda que possa ser posteriormente comprovado no curso do processo) que o intento do reclamante tenha sido o de ofender, com a veiculação de notícias sabidamente falsas, a honra da Delegada”
A decisão também mencionou que os agentes públicos devem suportar maior nível de crítica. Mesmo diante da objeção advinda do caráter nefasto das Fake News, aderiu-se a posição doutrinária de que “o requisito da verdade deve ser compreendido do ponto de vista subjetivo, equiparando-se à diligência do informador, a quem incumbe apurar de forma séria os fatos que pretende tornar públicos”.[3] O acórdão pontuou:
Se é fato que não se deseja a proliferação das tão nocivas fake news, também o é que o judiciário deve ter parcimônia ao limitar o exercício da atividade jornalística. O que se requer, dos jornalistas e propagadores de opiniões em geral, nesta senda, é o exercício responsável e diligente de suas funções, sendo possível a responsabilização ulterior por excessos comprovadamente cometidos.
Afirmou-se que seria inviabilizar a liberdade de informação que apenas se consentissem as publicações de verdade incontestáveis.
Esse acórdão de Turma do STF também chama a atenção por uma característica que vem marcando as decisões da Corte. De modo crescente, nota-se o apelo dos magistrados a citações ou referências a autores estrangeiros – às vezes mais do que de brasileiros -, mesmo que o citado não seja um jurista e mesmo que nem sempre o conteúdo da citação guarde imediata relação de interesse com as peculiaridades da causa. Nesse acórdão, a par de dois juristas nacionais, foram citados Zygmund Bauman, Ronald Dworkin (para frisar a importância da liberdade de expressar ideias minoritárias) e Konrad Hesse (para acentuar a conexão da liberdade de informação e o processo democrático). Além de Oliver Wendell Homes. A justificação com apoio em notas eruditas pode ser compreendida no contexto de busca de legitimação para decisões que envolvem escolhas políticas e morais controvertidas. Em todo caso, o fenômeno não deixa de ser significativo do período pós-2001 da Corte.
No precedente, houve voto na corrente vencedora que claramente pregou um papel meta-jurídico à admissibilidade do conhecimento direto no STF de decisões iniciais da primeira instância nessa área. O voto sustentou que, “em matéria de liberdade de expressão, nas situações mais relevantes, o Supremo tem sim um papel didático, um papel propedêutico, na superação de uma cultura autoritária”.
Essa decisão pela intervenção direta do STF sobre decisões de primeira instância, até mesmo quando de ordem cautelar, envolvendo conflito entre direitos de personalidade e liberdade de expressão não foi isolada em 2018. Na realidade, reiterou outro julgado da mesma Primeira Turma (Rcl 22328, DJe- 10.5.2018), em que se disse que “a liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades”. Acrescentou-se que “eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização”.
Nessa Rcl 22328, foi retratado o que vem sendo efetivamente a guia do STF nesses casos, resumindo-se assim o entendimento:
Embora não haja hierarquia entre direitos fundamentais, tais liberdades possuem uma posição preferencial (preferred position), o que significa dizer que seu afastamento é excepcional, e o ônus argumentativo é de quem sustenta o direito oposto. Consequentemente, deve haver forte suspeição e necessidade de escrutínio rigoroso de todas as medidas restritivas de liberdade de expressão.
Foram recordados os fundamentos habitualmente defendidos para frisar o peso abstrato específico da liberdade de expressão, como a sua relevância para se construir um consenso democrático bem informado, a sua instrumentalidade para a expressão anímica e de ideias inerentes à dignidade da pessoa, a busca da verdade pelo confronto de ideias porventura opostas ou complementares e a criação de condições para o avanço do conhecimento.
A seguir, o relator também adiantou o que lhe parecia devessem ser os oito fatores a serem contemplados para se estabelecer um correto balanço entre a liberdade de expressão e um direito de personalidade que se lhe oponha. Seriam eles:
(i) Veracidade do fato[4]; (ii) licitude do meio empregado na obtenção da informação[5]; (iii) personalidade pública ou privada da pessoa objeto da notícia; (iv) local do fato; (v) natureza do fato[6]; (vi) existência de interesse público na divulgação em tese; (vii) existência de interesse público na divulgação de fatos relacionados com a atuação de órgãos públicos; e (viii) preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição prévia da divulgação[7].
Se há uma nítida tendência em se privilegiar a liberdade de expressão quando em conflito com direitos de personalidade, não pode, contudo, ser dado como definitivamente assentado que o Tribunal continuará a cassar decisões de primeira instância por meio de reclamações, por desobediência à decisão, dotada de efeito vinculante, na ADPF 130. Em novembro de 2018, a outra Turma do STF, a 2ª Turma, recusou o cabimento da análise de pretensão de reclamante de desautorizar, com dispensa do habitual encadeamento de instâncias judiciais, liminar que protegera direito de personalidade por meio de inibição à publicidade de matéria jornalística (cf. Rcl 28262 AgR, DJe 8.11.2018). Venceu, aqui, a inteligência de que, “na ADPF n. 130, o STF não proibiu que medida judicial protegesse direitos de personalidade agredidos injustamente, conforme assim o sentiu o juiz de primeiro grau, em matéria publicada na Internet”.
Em outro caso de relevância para a compreensão do âmbito material da liberdade de expressão, o STF se defrontou com crítica a norma federal de 1996 (art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.612/96), que dispunha ser “vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de rádio comunitária”.
Pesava em favor da lei o argumento de que o proselitismo, entendido como “propagação enfática e sectária de determinada ideologia política, religiosa, científica, etc., com pretensão de converter ouvintes” (definição do voto vencido do relator da ação direta) não seria compatível com o papel de promoção da pluralidade de ideias que foi indicado como próprio das rádios comunitárias (rádios de alcance eletromagnético reduzido a comunidades de restrita dimensão geográfica).
Tornou-se a insistir que o direito decorrente da liberdade de expressão goza de primado inicial, quando cotejado com pretensões opostas. É interessante notar a notícia da relação de julgados nessa diretriz que o voto vencedor arrolou para confirmar essa linha básica:
A jurisprudência desta Corte tem realçado a primazia de que goza o direito à liberdade de expressão na Constituição. Por exemplo, quando do julgamento da ADI 4.451, Rel. Ministro Ayres Britto, DJe 24.08.2012, por exemplo, o Tribunal assentou que “não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”. Já na ADPF 130, também de relatoria do e. Ministro Ayres Britto, o Tribunal fez observar que “o pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna”. Na ADI 2.404, um outro exemplo dessa orientação, de relatoria do e. Ministro Dias Toffoli, a Corte, ao reconhecer a inconstitucionalidade da previsão legal de sanções para o descumprimento das regras de classificação indicativa, definiu que “o exercício da liberdade de programação pelas emissoras impede que a exibição de determinado espetáculo dependa de ação estatal prévia”.
Acrescentou-se que a liberdade de informação transcende o interesse de quem deseja se manifestar, para alcançar também a esfera de interesse de quem recebe a notícia. Daí constar do acórdão que “o direito a liberdade de expressão abrange, necessariamente, uma dimensão social, que engloba o direito de receber informações e ideias”. Reiterou-se precedente em que se concordou em que o discurso proselitista, longe de ser uma deturpação da liberdade de expressão, é da essência do exercício da liberdade religiosa, sobretudo no que tange às religiões universais. Lembrou-se até mesmo de precedente da Corte Europeia de Direitos Humanos (Caso n. 14.307/88 Kokkinakis v. Grécia), para se concluir que “liberdade de pensamento inclui o discurso persuasivo e o uso de argumentos críticos. Consenso e debate publico informado pressupõem a livre troca de ideias e não apenas a divulgação de informações”. Assentou-se, afinal, que “a veiculação em rádio de discurso proselitista, sem incitação ao ódio ou à violação, e, evidentemente, sem discriminações, é minimamente invasivo relativamente à intimidade, direito potencialmente a ser resguardado (...) bastaria, em casos tais, que se desligue o rádio”
O julgamento simultâneo de quatro ações diretas de inconstitucionalidade - AADDI 4756, 4747, 4679 e 4923 -, publicado do DJe de 5.4.2018, resolveu diversas controvérsias suscitadas pelo novo marco regulatório do setor de TV por assinatura (Lei nº 12.485 de 2011, Lei do Serviço do Acesso Condicionado-SeAC). A lei foi atacada por essas ações com os mais variados argumentos e em diversos dos seus artigos. Finalmente, poucas disposições foram censuradas pelo Tribunal. Cabe ressaltar aqui algumas questões conexas com argumentos relacionados com a liberdade de expressão no sistema constitucional brasileiro de comunicação social.
A lei estabelece que a gestão, a responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção inerentes à programação e ao empacotamento dessas empresas atuantes no Brasil são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos (art. 10). O problema foi posto em termos de compatibilidade com o princípio da igualdade, levando-se em conta interesses de liberdade de comunicação de massa.
Prontamente, o Tribunal salientou que não há regra na Constituição que proíba a diferenciação entre brasileiros e estrangeiros, embora haja regra que impeça a distinção entre brasileiros natos e naturalizados que não esteja contemplada no seu texto. O acórdão não negou a óbvia diferenciação que a lei estabeleceu entre brasileiros natos e brasileiros naturalizados há menos de 10 anos, mas a teve como apoiada em interpretação do disposto no art. 222, §§ 2º e 3º, da Constituição[8], que estabelecem, lidos em conjunto, que os meios de comunicação social em geral, e não apenas as empresas jornalísticas e de radiodifusão, estão abrangidos pelas regras que dispõem sobre a necessidade de o brasileiro naturalizado já o ser há mais década para controlar as programações respectivas. Entendeu-se que a restrição é “de todo condizente com os vetores axiológicos que informam, no plano constitucional, a atividade de comunicação de massa, entre os quais a preservação da soberania e identidade nacionais, o pluralismo informativo e a igualdade entre os prestadores de serviço a despeito da tecnologia utilizada na atividade”.
A mesma ação também tratou da legitimidade da instituição de um sistema de cotas de conteúdo nacional para as empresas do setor. Entendeu-se que a interferência sobre a livre iniciativa atende a propósitos constitucionais, como o da promoção da liberdade de expressão, abrindo espaço para manifestações artísticas e atividades de informação sobre realidades brasileiras que não seriam veiculadas sem a imposição. Falou-se que o desenvolvimento da cultura nacional, que em outros preceitos da Constituição é assumido como meta do Estado, também se beneficia com o sistema de cotas. Assinalou-se que as cotas não são tão dilatadas, especialmente quando comparadas com as existentes em outros países, e que não são permanentes, mas limitadas a 12 anos de vigência, compatível com expectativa de restabelecimento de igualdade material. Foi referido que outras alternativas de estímulo à produção nacional, como incentivos fiscais, por exemplo, não se mostraram suficientes para a obtenção dos fins buscados, ante “a fragilidade do mercado audiovisual brasileiro em face do poder econômico internacional”. Afinal, salientou-se que a lei dispõe sobre um período de transição, permitindo suave adaptação das empresas ao sistema concebido. O acórdão concluiu que a lei passava sem dificuldade nos testes da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
A imposição de limites de tempo para publicidade comercial não atraiu debate em torno da liberdade de expressão comercial – a regra atacada nas ações diretas foi prontamente acolhida como legítima, sob a perspectiva da defesa do direito do consumidor. Assinalou-se que “o consumidor do [serviço de TV a cabo], ao assinar um pacote de canais, desembolsa recursos para obter maior diversidade de conteúdo e programação audiovisual, o que, obviamente, não se refere a propaganda comercial”.
Ainda por um outro ângulo, o julgamento é de interesse. A lei atribui poderes normativos a agência governamental, a Agência Nacional de Cinema-ANCINE, isso provocou dúvida sobre a compatibilidade com os princípios da separação de poderes e o da legalidade dessa entrega de competência para criar obrigações e direitos a uma entidade que compõe o Poder Executivo. Foi arguido que isso significava indevida delegação de poderes do Legislativo para o Executivo.
A saolução do Supremo Tribunal fundou-se numa compreensão ao dia do princípio da separação de poderes – e não segundo o pano de fundo histórico da ruptura do Antigo Regime, no século XVIII. As mudanças do papel dos Poderes Públicos, com as múltiplas intervenções nos vários domínios da sociedade civil, pressupondo conhecimentos altamente especializados, e à vista da nova função assumida pelo Estado de provedor de necessidades e de promotor de justiça social, exige uma nova configuração das competências clássicas de cada Poder. “A resposta institucional a essa demanda da sociedade contemporânea —disse o acórdão— veio na forma de agências reguladoras independentes”. O novo paradigma torna compatível com o Estado de Direito que o legislador trace metas e balizas para a atuação da agência, conferindo-lhe amplo espaço para deliberação, desde que a lei contenha normas com o mínimo de densidade que permita o controle dessas decisões pelo Judiciário e pelo próprio Congresso Nacional. Lê-se no voto que conduziu a solução adotada pelo Tribunal:
A técnica legislativa empregada no diploma em exame é exatamente aquela típica do Estado regulador contemporâneo, em que a lei define as metas principais e os contornos da atividade do órgão regulador, cometendo-lhe (nestes limites e sob o controle do Judiciário e do próprio Legislativo) margem relativamente ampla de atuação. E, como também já apontado, é bom que assim o seja, na medida em que (i) a matéria, de um lado, se reveste de significativo dinamismo, como denotam as tendências de convergência tecnológica que tornaram obsoleta a legislação nacional anterior, e (ii) a disciplina do setor audiovisual, em diferentes aspectos, suscita questões de elevada complexidade técnica, a exigir conhecimento especializado, como aquele titularizado pela ANCINE. Nesse cenário, exigir que a lei formal esgote o conteúdo normativo aplicável à espécie é tanto impraticável quanto desaconselhável, reconduzindo-nos a um paradigma de legalidade criado para um perfil de Estado que já não existe mais.
A estrutura do Federalismo brasileiro tem atraído a atenção mais detida do STF nos últimos tempos. Percebe-se uma tendência, sobretudo em alguns dos integrantes mais novos da Corte, de conferir um enfoque diferente do que predominou até recentemente na jurisprudência. O Tribunal sempre se inclinou por interpretar trechos mais abertos a interferência judicial de modo a favorecer o âmbito das competências da União, evitando-se um incremento de competências estaduais ou municipais. Nos casos, porém, de interpretação de normas de caráter fiscal-tributário, não se nota a mesma variação. Os próximos acórdãos em exame situam-se nesse compasso.
A jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal sempre se orientou no sentido de que normas da Constituição Federal relativas ao processo de elaboração de leis se impõem aos Estados-membros e aos Municípios. Regra da Constituição Federal sobre quórum necessário para a aprovação de Emenda à Constituição, nessa linha, já foi tida, em precedente do STF (ADI 486, DJ 10.11.2006), como de absorção inevitável pelos Estados-membros. O fundamento para a deliberação do Tribunal em 2006 tinha saudável apoio na melhor doutrina sobre as características típicas do poder constituinte originário e do poder constituinte exercido pelos Estados-membros na Federação brasileira, chamado de poder constituinte derivado. A rigidez da Constituição é uma opção nuclear do poder constituinte originário e o grau dessa mesma rigidez com que o sistema constitucional originário foi imantado deve ser seguido pelos Estados-membros, sob pena de se perder a identidade jurídica em aspecto essencial da estruturação do Estado brasileiro. Por isso, o relator da ADI 486 conduziu o Plenário do STF a declarar a inconstitucionalidade de norma de Constituição estadual que exigia quórum mais rigoroso do que o prescrito pela Constituição Federal para emendas ao seu texto. No precedente de 2006, foi escrito:
(...) Os critérios definidores da rigidez constitucional são aqueles estabelecidos, de modo implícito ou explícito, pelo próprio texto da Constituição da República.
Isso significa que o procedimento ritual e todas as exigências de ordem formal e material concernentes à reforma da Carta Política, tais como delineados na Constituição Federal, além de insuprimíveis pelos Estados-membros, não podem ser por estes modificados com fundamento em sua competência reformadora, cujo exercício sofre, em tais pontos, inquestionável limitação de natureza imposta pelo legislador constituinte primário.
Essas sólidas razões foram retomadas pelo relator e por outros ministros do STF em 25.10.2018, quando do julgamento da ADI 825, mas não obtiveram o apoio da maioria que se formou num caso em que se discutia se seria possível que um Estado-membro adotasse a forma da inciativa popular para a apresentação de proposta de emenda à Constituição desse Estado. Prevaleceu, por maioria, o entendimento de que:
É facultado aos Estados, no exercício de seu poder de auto-organização, a previsão de iniciativa popular para o processo de reforma das respectivas Constituições estaduais, em prestígio ao princípio da soberania popular (art. 1º, parágrafo único, art. 14, I e III, e art. 49, XV, da CF).
Para se compreender a controvérsia, é preciso ter presente que o constituinte não previu a possibilidade de emenda à Constituição Federal por via de iniciativa popular, quando, no art. 60, enumerou com precisão quem poderia provocar o Congresso Nacional para a tarefa. Além disso, o constituinte foi expresso quando admitiu a iniciativa popular, no caso da apresentação de projeto de lei. O relator do processo, afinal, deu a notícia de que houve discussão na Assembleia Constituinte sobre a iniciativa popular para propositura de emenda à Constituição, mas que não se produziu o resultado propugnado por alguns juristas da época, favoráveis à mais ampla expressão da democracia direta.
Tudo isso não obstante, a ideia de prestigiar a manifestação direta do povo foi decisiva para que a maioria dos ministros reconhecesse a liberdade dos Estados-membros para dispor a esse respeito, sem embargo de não se haver instituído iniciativa dessa ordem no plano federal. De modo isolado, houve até Ministro sugerisse que, também no plano da Constituição Federal, seria pertinente a iniciativa popular para emendar a Carta Política. Foi salientado, mais, que outros Estados-membros, inclusive o mais poderoso da Federação, o Estado de São Paulo, adotavam esse caminho.
Em outro julgamento (RE 626.837-RG, Plenário, DJe 1º.2.2018), o STF reiterou a sua jurisprudência centrada na interpretação da imunidade tributária recíproca como a abranger apenas tributos da espécie impostos, e, não, contribuições. “A imunidade recíproca do art. 150, VI, a, da Constituição Federal alcança apenas a espécie tributária imposto”, ensinou o Tribunal. As contribuições, assim, não enfrentam obstáculo para incidirem sobre interesses dos Estados-membros e Municípios. No RE 773.992-RG, o Plenário esclareceu, ainda a propósito da imunidade recíproca, que as empresas públicas e as sociedades de economia mista, integrantes da Administração Pública indireta de cada esfera da Federação, também se beneficiam da imunidade contra impostos de outros entes federados, em função de interpretação extensiva do art. 150 da Constituição (a regra não se refere expressamente a essas pessoas jurídicas). Há que se atender, para tanto, o requisito de que essas empresas sejam prestadoras de serviço público. Daí se assentou que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, empresa pública federal, não poderia ter os seus imóveis onerados por imposto municipal sobre a propriedade urbana.
O resultado da arrecadação dos impostos da União deve ser partilhado com os Estados-membros e com os Municípios, por meio de Fundos instituídos para essa finalidade. Boa parte dos Municípios e também certos Estados dificilmente conseguiriam se manter sem esses recursos. Daí o interesse que despertou a questão de saber se a União pode conceder benefícios, incentivos e isenções de seus impostos (sobre renda e sobre produtos industrializados), já que isso afeta o montante dos recursos destinados ao Fundo de Participação dos Municípios. O STF, no RE 705.423 (DJe 5.2.2018), deliberou que a União tem o direito de conceder isenções e de estabelecer renúncias fiscais. Assim o fazendo, não cabe aos Municípios pedir que a parcela não arrecadada desses impostos, nesses casos, seja coberta por outros recursos da União. O Tribunal assentou que o produto da arrecadação a que se refere a Constituição (art. 158) a ser partilhado “abrange a arrecadação tributária bruta, sem a possibilidade de dedução das despesas administrativas e computando-se as multas moratórias e punitivas”. Essa conceituação técnica exclui os recursos que não foram auferidos, mercê de isenções e renúncias fiscais.
Percebe-se um apelo crescente da jurisprudência do STF à garantia constitucional da segurança jurídica em seus julgados envolvendo restrições a direitos e quebra de expectativas dos jurisdicionados. Ao lado das tradicionais garantias constitucionais do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido, que possuem contornos denotativos mais estritos no Brasil, tem-se prestado também proteção ao valor da certeza do direito, da estabilidade das situações estabelecidas de boa-fé, da confiança e do acesso à Justiça.
No ARE 951.533-AgR-segundo (DJe 25.10.2018), declarou-se imprópria a alteração de prazo para requerimento administrativo ou para ajuizamento de ação, que impede que o interessado realize o ato para o qual acreditava ter ainda tempo para o praticar. Ficou esclarecido que a redução de prazo pode acontecer, “pois não existe direito adquirido a regime jurídico”. Foram tidas como ofensivas à garantia do acesso à justiça, porém, as alterações que “fulminem, de imediato, prazos então em curso, com aplicação às pretensões pendentes ainda não ajuizadas”.
O Tribunal voltou a minudenciar o significado da proteção da segurança jurídica, ao resolver caso eleitoral, na ADI 5398 MC, Plenário (DJe 20.11.2018). Importa transcrever o sumário dessa garantia constitucional como apresentada no acórdão:
Do ponto de vista objetivo [a segurança jurídica] se refere (i) à anterioridade das normas jurídicas com relação às situações às quais se dirigem; (ii) à estabilidade do Direito, que deve ter como traço geral a permanência e continuidade das normas; e (iii) à não retroatividade das leis, que não deverão produzir efeitos retrospectivos para colher direitos subjetivos constituídos.
Já do ponto de vista subjetivo, a segurança jurídica refere-se à proteção da confiança, relativamente aos atos do poder público, tendo como corolário a tutela das expectativas legítimas.
Mais a seguir, o Tribunal, ecoando a doutrina estabelecida, ressaltou que a proteção das expectativas legítimas “decorre da obrigação estatal de agir com boa-fé (...), uma exigência do Estado Democrático de Direito”. Com base nessas premissas, julgou inconstitucional a falta de previsão de cláusula de transição em lei que proibia a migração de parlamentares eleitos para agremiações partidárias recém-fundadas.
A proteção da segurança, sob a vestimenta da tutela da confiança, fez com que o STF tomasse como legítima a aposentadoria de servidor público que ingressara no serviço público por força de decisão não definitiva da Justiça, que somente veio a ser cassada passados vários anos de atuação do servidor, quando e só então se decidiu, em definitivo, que o seu ingresso na carreira fora irregular. O acórdão reconheceu que o Tribunal decidira, no passado, que a posse em cargo público por via de decisão judicial não exauriente, não gera fato consumado insuscetível de revisão judicial. Assentou, entretanto, que situações excepcionais estariam fora dessa máxima de julgamento, impondo-se o distinguish. Concluiu que, “em casos de elevado grau de estabilidade da relação jurídica, em especial pela passagem de longo intervalo de tempo, o princípio da proteção da confiança legítima incide com maior intensidade”.
A segurança jurídica, uma vez mais, foi importante para solucionar impugnação a medida provisória que previa a incidência das novidades normativas que dispunha sobre planos de saúde celebrados anteriormente. Para o Tribunal,
É impróprio inserir nas relações contratuais avençadas em regime legal específico novas disposições, sequer previstas pelas partes quando da manifestação de vontade. A vida democrática pressupõe segurança jurídica, e esta não se coaduna com o afastamento de ato jurídico perfeito e acabado, mediante aplicação de lei nova.
Por último, a segurança, sob o ponto de vista material, como segurança pública, também foi determinante para que o STF, interpretando a Constituição, visse dela excluído o direito de greve dos policiais (ARE 654.432, Plenário, DJe 11.6.2018). O acórdão assinalou que o direito de greve dos servidores públicos não é absoluto. Afirmou, em seguida, que, efetuado o devido balanço do direito de “greve dos servidores com o direito de toda a sociedade à segurança pública e à manutenção da ordem pública e paz social (...), [excluir-se] a possibilidade do direito de greve [de todos os policiais civis e de servidores diretamente atuantes na área de segurança pública] é plenamente compatível com a interpretação teleológica do texto constitucional”.
Entre os inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal Federal em 2018, os que foram objeto de resenha merecem ser realçados para o leitor interessado no Direito Comparado. Nota-se que, em 2018, os acórdãos do Supremo Tribunal continuam seguindo o padrão de fundamentação com invocação frequente de doutrina nacional e estrangeira – sugestivamente, neste último caso, a doutrina citada costuma ser proveniente de países europeus ou dos Estados Unidos, sem que a literatura especializada latino-americana ganhe atenção específica. Não obstante, as preocupações que guiam as soluções alvitradas não são incomuns nas Cortes constitucionais ibero-americanas atuantes num ambiente democrático-social.
[1] |
Doutor em Direito (Universidade de Brasília), LL.M (University of Essex, UK), Professor do Mestrado e Doutorado em Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Membro do Ministério Público Federal. Contato: pgbranco@gmail.com. |
[2] |
“Acórdão” é o nome que se dá, no Brasil, às decisões colegiadas de tribunais. Reserva-se o termo “sentença” às decisões de juízes de primeiro grau de jurisdição, que deliberam sozinhos. |
[3] |
Vale observar que a questão do combate às fake news também foi referenciada em outra decisão, esta agora de 2019, em que se apontou que o melhor meio para se combatê-la seria o exercício do direito de resposta, em que o atingido pela notícia que tem como maliciosa se vale do canal utilizado pelo agressor para desmenti-lo. Foi dito que “direito de resposta é medida que resguarda o debate público contra posições unilaterais ou enviesadas, contribuindo para evitar a proliferação das tão nocivas fake news. Assegura-se, por esta via, que ambos os lados interessados possam manifestar livremente as suas opiniões e/ou versões dos fatos, bem como que o cidadão, munido de mais informações, forme sua própria convicção sobre o tema” (Rcl 33040, monocrática, j. 25.1.2019). Claro está que essa diretriz não pode ser observada quando a notícia falsa, por si só, já produz o estrago que a anima, o que acontece quando não há tempo para a resposta útil, num pleito eleitoral, por exemplo. |
[4] |
A notícia propositadamente falsa não estaria abrigada pelo direito fundamental, havendo o dever de, nos limites do razoável e de boa-fé, buscar-se apurar os fatos noticiados. |
[5] |
O voto, a esse respeito diz logo a seguir: “A Constituição, da mesma forma que veda a utilização, em juízo, de provas obtidas por meios ilícitos, também interdita a divulgação de notícias às quais se teve acesso mediante cometimento de um crime”. |
[6] |
Basicamente, deve ser considerado se envolve tema de caráter sigiloso ou de intimidade. |
[7] |
Em passagem adiante, o voto se refere a esse fator, dizendo: “O uso abusivo da liberdade de expressão pode ser reparado por mecanismos diversos, que incluem a retificação, a retratação, o direito de resposta, a responsabilização civil ou penal e a interdição da divulgação. Somente em hipóteses extremas se deverá utilizar a última possibilidade. Nas questões envolvendo honra e imagem, por exemplo, como regra geral será possível obter reparação satisfatória após a divulgação, pelo desmentido – por retificação, retratação ou direito de resposta – e por eventual reparação do dano, quando seja o caso”. |
[8] |
Art. 222. A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. (...) § 2o A responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação veiculada são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, em qualquer meio de comunicação social. § 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. |