Em 6 de fevereiro de 2020, o Brasil ganhou lei específica[2] para disciplinar providências de reação à pandemia da Covid-19. A doença, espalhava pela Ásia e Europa, começava a chegar, com todo o seu potencial desnorteante, assustador e mortífero ao país. Os números de casos e de óbitos subitamente brotavam das estatísticas em desbragado ritmo crescente. Em março de 2020, o quadro sanitário já determinava a adoção de medidas de distanciamento social. Órgãos diversos do setor público passaram a operar via internet. Foram suspensas atividades presenciais de ensino, bem como atividades comerciais, sociais e religiosas. O termo «lockdown» logo se aportuguesou na sua pronúncia, inserido no vocabulário corriqueiro e ubíquo. A generalidade da população, que vinha das folias tradicionais do carnaval, tão festejado em todo o Território, repentinamente se defrontava com as aflições da abismada tragédia, que parecia, até então, circunscrita ao outro lado do Atlântico.
As primeiras providências governamentais foram céleres, como a edição da lei no início do ano de 2020. Mas o clima de incerteza característico do inesperado e desconhecido fenômeno se impôs.
Num momento de polarização política prolongado após as últimas eleições gerais do país, acontecidas um ano e meses antes, às dificuldades inerentes ao quadro sanitário caótico se somava a inflamação político-partidária.
Em agosto de 2020, o país ingressava na macabra faixa dos mais de 100.000 mortos. No momento em que esta crônica é escrita, em setembro de 2021, embora a pandemia esteja em momento de refluxo nos seus números assustadores, já são mais de 580 mil os falecidos em razão da COVID-19 e os brasileiros que contraíram o vírus se aproximam da marca dos 21 milhões.
Tudo neste ano e meio de pandemia oficial se expressa em proporção magnificada. Em todos os setores. Basta notar que do início da crise até setembro de 2021, houve quatro Ministros da Saúde, a maior autoridade no setor no âmbito federal. Até o final do ano de 2020, 5.570 municípios do Brasil lançaram mais de 33 mil leis relacionadas com a pandemia; os 27 Estados-membros, mais de mil e quinhentas leis; no plano federal, foram produzidas duas Emendas Constitucionais, 38 leis ordinárias e 69 medidas provisórias[3]. Até agora, o sítio oficial do Supremo Tribunal Federal (STF) na Internet registra 9.503 processos e 12.242 decisões provocadas por aspectos constitucionais, administrativos, trabalhistas, de direito privado e penail, com que o novo coronavírus aturdiu a comunidade jurídica.
Certamente, há várias questões que se repetem em problemas de igual natureza, mas o retrato numérico da pandemia em termos de processos na Suprema Corte é evidentemente significativo.
Um dado interessante a se considerar é o de que, em nenhum instante, o Tribunal deixou de funcionar. Há muito que os processos judiciais no Brasil vinham migrando do formato físico para o virtual. Não foi particularmente árduo que a Justiça brasileira se tornasse totalmente eletrônica nesse período, o que permitiu que os serviços judiciários prosseguissem ininterruptos, por meio dos processos eletrônicos e julgamentos realizados em plataformas da internet.
No STF, já se havia inaugurado, muito recentemente, o julgamento em Turmas e Plenário virtuais. Nesses casos, o Ministro relator lança o relatório do caso e o seu voto, para serem apreciados pelos demais ministros, que também votam, a partir dos seus computadores, dentro de prazo determinado. Os advogados podem acompanhar os votos que vão sendo elaborados. A par dessa experiência, que se tornou crucial para a redução do estoque alarmante de processos, o STF imediatamente partiu então para o sistema de sessões por teleconferência.
No Brasil, todo o processo decisório é aberto ao acompanhamento do público e os julgamentos do Pleno do Supremo Tribunal são transmitidos em tempo real, sem edição, por emissora de televisão da própria Corte, que também pode ser acessada pela internet. Com a pandemia essas sessões ocorreram em plataformas de reuniões virtuais, podendo ser acompanhadas por qualquer pessoa pelo YouTube[4].
Assim, apesar dos transtornos da pandemia, os trabalhos não cessaram e a produtividade, afinal, foi mais acentuada.
O Legislativo também seguiu o padrão da Justiça e passou a deliberar também por um sistema complexo de votação telepresencial. A necessidade dos encontros pessoais mais intensa no âmbito do parlamento restringiu a pauta para temas mais urgentes. Como se viu, até emendas à Constituição foram votadas nesse sistema e inúmeras leis foram aprovadas em casas legislativas diversas nos Estados e Municípios.
Algumas questões decididas pela Suprema Corte podem ter mais apelo para o leitor interessado em experiências constitucionais, vistas sob o prisma comparativo. Embora o STF haja julgado inúmeros processos sobre os mais variados temas, cabe ressaltar, no espaço desta crônica, algumas soluções encontradas para os desafios que a COVID-19 trouxe ao descortino do mais elevado tribunal brasileiro.
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Os quadros políticos e sociais conflituosos da realidade brasileira se adensaram com as angústias da pandemia. No plano do governo federal, dominava uma sensibilidade mais favorável a medidas de contenção da pandemia que não prejudicassem os interesses da vida econômica; a disposição se invertia quando se contemplavam as reações de Estados —e de diversos Municípios—, especialmente os governados por políticos de oposição aos quadros federais no poder. Assistiu-se a uma disputa de perspectivas de enfrentamento tanto do problema de saúde como dos econômicos resultantes. Liberdades básicas foram postas em debate no conflito com o que se apresentava como o mais aconselhável a cada instante.
Embora as competências legislativas e materiais da União, dos Estados-membros e dos Municípios mereçam a atenção do constituinte federal, variados problemas de relacionamento entre essas pessoas políticas sujeitam-se ao parâmetro de normas pouco precisas, gerando a necessidade de ajustes jurisprudenciais pontuais e frequentes. A própria jurisprudência do STF no particular varia, ora pendendo para favorecer uma leitura concentradora de poderes no plano da União, ora se inclinando por uma postura mais centrífuga.
Ante uma tendência sentida do governo federal menos propensa, no campo das estratégias de prevenção e combate à pandemia, a adotar medidas restritivas de direitos individuais, boa parte da opinião pública reclamou da falta de providências ativas do governo central que se ajustassem às diretrizes de organismos internacionais de saúde e higiene pública. Essas diretrizes foram endossadas por alguns governos locais, em algumas ocasiões com evidentes exageros de execução. Os conflitos, tornando-se jurídicos, pousaram sobre a mesa de julgamentos do STF.
A competência para decretar medidas de isolamento social, de interdição de atividades públicas e de bloqueio a locomoção entre pontos do Território Nacional logo provocou polêmica.
Na ADPF 672 MC-Ref (DJe 29-10-2020), fixou-se que todas as esferas da Federação brasileira (União, Estados-membros e Municípios) eram responsáveis pela adoção de medidas de proteção à saúde. Foi dito que:
A gravidade da emergência causada pela pandemia do coronavírus (COVID-19) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde.
No acórdão, o STF enfatizou que cada uma das Pessoas Jurídicas Políticas está obrigada a agir dentro das exigências técnicas descobertas pelo desenvolvimento científico do momento.
O ponto de maior interesse foi a afirmação inequívoca de que medidas sanitárias, envolvendo isolamento social poderiam ser tomadas não somente pelo Presidente da República, mas também por Governadores de Estados e por Prefeitos de Municípios.
De maior impacto ainda foi a afirmação de que, se autoridade local determinasse medida restritiva a direitos individuais em prol da saúde, que se mostrassem de acordo com advertências técnicas de órgãos cientificamente competentes, o Chefe do Executivo Federal não poderia desautorizá-lo. Por isso, o acórdão afirmou que o Presidente da República, apesar da sua função coordenadora no plano da proteção da saúde:
Nem por isso pode afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus respectivos territórios, como a imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, sem prejuízo do exame da validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal editado nesse contexto pela autoridade jurisdicional competente.
Uma medida provisória[5] dispôs, nesse período, que as providências de cunho sanitário, envolvendo circulação de pessoas tomadas por autoridades dos Estados-membros ou dos Municípios, deveriam ser previamente aprovadas pela União, por meio do Ministério da Saúde. O STF, na ADI 6343 MC-Ref (DJe 17.11.2020), julgou que a regra era incompatível com a autonomia das entidades subnacionais, assegurada no modelo de Estado Federal adotado em 1988. O Tribunal, como no precedente acima exposto, afirmou que o Presidente da República não poderia afastar ordens que autoridades locais venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, relativas a medidas do tipo:
Distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos, como por exemplo, os estudos realizados pelo Imperial College of London, a partir de modelos matemáticos.
Daí, por igual —disse o acórdão—, não ser dado subordinar essas medidas restritivas a «exigência de autorização da União, ou obediência a determinações de órgãos federais». Acentuou-se que as medidas extraordinárias devem sempre «ser fundamentadas em orientações de seus órgãos técnicos correspondentes». Excepcionou-se, de toda sorte, a possibilidade de autoridade federal determinar o trânsito «de produtos e serviços essenciais definidos por ato do Poder Público federal».
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Mesmo enfrentando questões espinhosas surgidas das confusões da pandemia, o Tribunal teve o cuidado de não se transformar, ele próprio, em órgão gestor da crise de saúde pública. Buscou traçar o espaço próprio da atuação política dos órgãos políticos, no campo das decisões em que a Constituição não define previamente um modo de agir específico.
Na ADPF 671 AgR (DJe 6.7.2020), enfrentou pedido para que determinasse que o Sistema Único de Saúde[6], estatal, se impusesse aos serviços de saúde do sistema privado —mantido substancialmente por venda de planos de saúde particulares— e que requisitasse da iniciativa privada os serviços de pessoal e seus bens, sobretudo leitos de UTI, para que fossem postos à disposição da população em geral, segundo critérios de necessidade. O pedido importava desfazer o sistema de atendimento particular a quem havia voluntariamente a ele aderido, custeado pelos particulares desejosos de atendimento fora do sistema oficial. Segundo o Partido político, de esquerda e de oposição, que movera a demanda, a situação de pandemia estaria sem controle efetivo e a defesa ineficiente da saúde pública estaria lesionando direitos e valores constitucional, não só de estrato sanitário, mas também relacionados à vida, à igualdade e ao objetivo imposto pelo constituinte de se promover uma sociedade justa e igualitária.
O Tribunal iniciou a sua decisão com breves argumentos sobre o descabimento técnico da arguição de descumprimento de preceito fundamental no caso. Prolongou-se mais extensamente no apontar que cabia, em tese, às três esferas da Federação efetuar requisições de serviços e bens particulares em momentos de necessidade crítica.
O acórdão recordou que as requisições administrativas têm fundamento em dispositivos da Constituição (arts 5°, XXIII e XXV, e 170, III[7]). Assinalou que a Constituição também estabelece a competência material e legislativa comum de todas as entidades componentes do Estado Federal para cuidar da saúde pública e atuar no campo da assistência. Ressaltou, porém, que o ato da requisição se inclui no âmbito do poder discricionário da Administração. Se a requisição exige uma «inequívoca configuração de perigo público iminente», a avaliação sobre a sua ocorrência e do objeto da própria requisição «cabe exclusivamente às distintas autoridades administrativas, consideradas as respectivas esferas de competência, depois de sopesadas as diferentes situações emergentes na realidade fática». Enfim, foi dito que:
Não cabe ao Supremo Tribunal Federal substituir os administradores públicos dos distintos entes federados na tomada de medidas de competência privativa destes, até porque não dispõe de instrumentos adequados para sopesar os diversos desafios que cada um deles enfrenta no combate à Covid-19.
Vulneraria frontalmente o princípio da separação dos poderes a incursão do Judiciário numa seara de atuação, por todos os títulos, privativa do Executivo, substituindo-o na deliberação de cunho político-administrativo, submetidas a critérios de conveniência e oportunidade, sobretudo tendo em conta a magnitude das providências pretendidas nesta ADPF, cujo escopo é a requisição compulsória e indiscriminada de todos os bens e serviços privados voltados à saúde, antes mesmo de esgotadas outras alternativas cogitáveis pelas autoridades federais, estaduais e municipais para enfrentar a pandemia.
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O acompanhamento pelos cidadãos do quadro da pandemia e do modo como os seus representantes políticos lidam com ela foi sempre percebido como crucial, gerando pronunciamentos marcantes do STF sobre direito à informação.
Num dos casos, o Tribunal reagiu à decisão do Executivo Federal de restringir a divulgação de dados sobre números de novos casos e de mortes pela Covid.
Na ADPF 690 (DJe 15-04-2021), o STF afirmou a existência de um direito fundamental a informações prestadas pelo Poder Público que sejam do interesse dos administrados. Assentou que:
Salvo situações excepcionais, a Administração Pública tem o dever de absoluta transparência na condução dos negócios públicos, sob pena de desrespeito aos artigos 37, caput, e 5º, incisos XXXIII e LXXII [da Constituição]. […] A Constituição consagrou expressamente o princípio da publicidade como um dos vetores imprescindíveis à Administração Pública, conferindo-lhe absoluta prioridade na gestão administrativa e garantindo pleno acesso às informações a toda a Sociedade. […]
À consagração constitucional de publicidade e transparência corresponde à obrigatoriedade do Estado em fornecer as informações necessárias à Sociedade. O acesso às informações consubstancia-se em verdadeira garantia instrumental ao pleno exercício do princípio democrático, que abrange «debater assuntos públicos de forma irrestrita, robusta e aberta» (Cantwell v. Connecticut, 310 U. S 296, 310 (1940), quoted 376 U. S at 271-72), de maneira a garantir a necessária fiscalização dos órgãos governamentais, que somente se torna efetivamente possível com a garantia de publicidade e transparência.
Daí a conclusão de que:
A interrupção abrupta da coleta e divulgação de informações epidemiológicas, imprescindíveis para a análise da série histórica de evolução da pandemia (COVID-19), caracteriza ofensa a preceitos fundamentais da Constituição Federal.
O Tribunal determinou que o Ministério da Saúde recuasse de decisão de modificar metodologia de informação de casos de Covid. Mandou que fosse mantida «em sua integralidade, a divulgação diária dos dados epidemiológicos relativos à pandemia (COVID-19), inclusive no sítio do Ministério da Saúde e com os números acumulados de ocorrências».
Por outro lado, o STF agiu para garantir o direito à privacidade e à autodeterminação informativa, ao censurar como inconstitucional medida provisória que, invocando a pandemia, determinara que as empresas privadas, concessionárias de serviços de telefonia fixa e móvel, compartilhassem todos os dados dos seus clientes com autarquia federal encarregada de produzir dados estatísticos (o IBGE).
Na ADI 6387 MC-Ref (DJe 12-11-2020), o Tribunal advertiu que, mesmo quando cabível, o compartilhamento de dados pessoais deve estar cercado de garantias de que a sua manipulação seja «adequada, relevante e não excessiva em relação [ao seu] propósito» e que os informes sejam «conservados apenas pelo tempo necessário». Analisando a medida provisória sob o crivo do princípio da proporcionalidade, o Tribunal entendeu que os motivos da medida provisória não permitiam apurar que os subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito justificariam a ordem. Ressaltou que estava em questão «prevenir danos irreparáveis à intimidade e ao sigilo da vida privada de mais de uma centena de milhão de usuários dos serviços de telefonia fixa e móvel».
Afinal, o acórdão consignou:
Ao não definir apropriadamente como e para que serão utilizados os dados coletados, a MP nº 954/2020 desatende a garantia do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), na dimensão substantiva, por não oferecer condições de avaliação quanto à sua adequação e necessidade, assim entendidas como a compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas e sua limitação ao mínimo necessário para alcançar suas finalidades. Ao não apresentar mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger, de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida, seja na transmissão, seja no tratamento, o sigilo, a higidez e, quando o caso, o anonimato dos dados pessoais compartilhados, a MP nº 954/2020 descumpre as exigências que exsurgem do texto constitucional no tocante à efetiva proteção dos direitos fundamentais dos brasileiros. Mostra-se excessiva a conservação de dados pessoais coletados, pelo ente público, por trinta dias após a decretação do fim da situação de emergência de saúde pública, tempo manifestamente excedente ao estritamente necessário para o atendimento da sua finalidade declarada. O cenário de urgência decorrente da crise sanitária deflagrada pela pandemia global da COVID-19 e a necessidade de formulação de políticas públicas que demandam dados específicos para o desenho dos diversos quadros de enfrentamento não podem ser invocadas como pretextos para justificar investidas visando ao enfraquecimento de direitos e atropelo de garantias fundamentais consagradas na Constituição.
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Em outras ocasiões, o STF, embora fiel à doutrina de que não lhe cabia ditar as providências específicas para o drama de saúde pública que o Brasil, juntamente com o resto do mundo, atravessava, concitou o Poder Executivo federal a tomar providências reclamadas pela urgência dos desafios e diante escassez de meios eficazes para conter a contaminação descontrolada da população.
Quando a esperança geral foi estimulada pela produção, com rapidez inédita, de vacinas contra o coronavírus, e à falta de divulgação de critérios para a distribuição dos imunizantes, que não eram imediatamente suficientes em número para a distribuição a toda à população, o Tribunal determinou que o Ministério da Saúde, em curto prazo, divulgasse o plano de imunização prioritárias. Invocou para a decisão não somente o direito à saúde, como também o direito da cidadania de ser informada de decisões de alcance social.
Na ADPF 754 TPI-segunda-Ref (DJe 11-03-2021), o STF entendeu presente o risco para a saúde e para a vida na «alegada omissão sobre a discriminação categorizada dos primeiros brasileiros a serem vacinados». Proclamou que «o direito à informação e o princípio da publicidade da Administração Pública constituem verdadeiros pilares sobre os quais se assenta a participação democrática dos cidadãos no controle daqueles que gerenciam o patrimônio comum do povo, seja ele material ou imaterial, com destaque para a saúde coletiva, sobretudo em período de temor e escassez de vacinas». Daí expedir ordem para «determinar ao Governo Federal que divulgue, no prazo de 5 (cinco) dias, com base em critérios técnico-científicos, a ordem de preferência entre os grupos prioritários, especificando, com clareza, dentro dos respectivos grupos, a ordem de precedência dos subgrupos nas distintas fases de imunização contra a Covid-19».
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Outras diversas decisões a respeito da COVID foram tomadas, muitas delas no campo das competências dos entes federados. Se medidas de saúde foram constantemente tratadas como suscetíveis de abordagem pelas três esferas da Federação, outras tantas, que diziam respeito, por exemplo, a intervenção do Estado em disposições contratuais, na ordem do Direito Privado, seguiram o padrão de considerar que temas de Direito Civil são da competência privativa da União. Assim, fulminou-se lei estadual que, a pretexto de ter havido redução dos custos das escolas com a adoção de aulas «telepresenciais», impunha redução nas mensalidades durante a pandemia (ADI 6.435, julgada em 21.12.2020). Na mesma linha, julgou-se procedente contestação a lei estadual que proibia cobrança de empréstimos, quando realizados por funcionários públicos, durante o auge da pandemia (ADI 6484, sessão virtual de 25.9.2020 a 2.10.2020). Da mesma forma, foi declarada inconstitucional lei estadual que impedia operadoras de planos de saúde de recusar serviço a pessoas suspeitas ou contaminadas pelo coronavírus, a pretexto de ainda não terem cumprido prazo de carência contratual.
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O que sobressai desse apanhado meramente exemplificativo de precedentes é a intensa busca, tanto por entes públicos como por entidades da sociedade civil, de definições pelo Supremo Tribunal Federal de tantas perplexidades jurídicas, e também políticas, que aturdiram o quotidiano do país nos meses mais desnorteantes da funesta disseminação da Covid-19. O Tribunal buscou respondê-las, apontando limites práticos para a sua atuação, induzindo a medidas úteis e necessárias que —aventura-se a conjectura— talvez estivessem mesmo à espera do impulso dado pela jurisdição constitucional.
[1] |
Doutor em Direito (UnB), Subprocurador-Geral da República. Professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP (graduação, mestrado e doutorado). |
[2] |
Lei n.13.979/2020. |
[3] |
Cf. Ingo Sarlet. «O STF e os direitos fundamentais na crise da Covid-19». Consultor Jurídico, 15.1.2021. |
[4] | |
[5] |
Ato normativo produzido pelo Presidente da República dotado de força de lei e subordinado a posterior confirmação pelo Congresso Nacional. |
[6] |
O Sistema Único de Saúde foi uma das mais celebradas criações da Constituição de 1988, em vigor. Todos os brasileiros foram incluídos nesse monumental programa, que assegura a todos, gratuitamente, assistência médica integral pelo Estado, diretamente ou por convênios. O sistema estatal convive com os serviços de saúde oferecidos, mediante custeio particular, pela iniciativa privada, aos que assim o desejarem. As três esferas da Federação contribuem financeiramente para a realização do Serviço, que tem na União (Ministério da Saúde) o órgão coordenador. |
[7] |
Neste ultimo, é dito que, «no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano». |