Como citar / Citation: Gonet Branco, P. G. (2022). Resenha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em 2021 sobre a liberdade de expressão. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, 26(2), 629-‍641. doi: https://doi.org/10.18042/cepc/aijc.26.20

SUMARIO
  1. I. LIBERDADE DE EXPRESSÃO
  2. II. CONCLUSÃO
  3. NOTAS

Além de consolidar jurisprudência formada em torno da crise engendrada pela pandemia mundial[2], algumas tantas questões sensíveis foram abordadas nos inúmeros julgados do Supremo Tribunal Federal em 2021. Foram proferidas decisões em 98.395 processos. A vasta maioria, decerto, resolveu questões menores de cabimento de recurso, de descarte de peças inviáveis, ou de reiteração de jurisprudência assentada. Mesmo assim, não deixa de ser um número de causar impressão, sobretudo no que revela de engajamento do tribunal em esforços de pouca utilidade para a função de estabilidade do entendimento da Constituição. Continua, porém, a ser inusitado o volume de demandas em temas típicos de Corte constitucional e de órgão de cúpula do Judiciário[3].

No campo do controle abstrato de constitucionalidade, o Supremo Tribunal é competente para confrontar leis e atos normativos, tanto da União como dos Estados-membros e do Distrito Federal, com a Constituição da República. Por meio de um instrumento específico, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, impugnações de inconstitucionalidade de leis municipais que a Corte estime relevantes podem também se expor ao contraste em abstrato.

Para se estimar o potencial de provocação ao tribunal que o sistema enseja, basta que se considere que são 27 as unidades federadas e mais de 5.500 os Municípios do país. Some-se a isso a circunstância de a Constituição de 1988 ser particularista, seguindo o standard analítico. O diploma desce a minúcias em temas tipicamente de Direito Administrativo, dispõe sobre vários direitos de trabalhadores, contém uma codificação de diversos aspectos de direito tributário e é relativamente minucioso ao dispor sobre processo legislativo aplicável não somente ao Congresso Nacional, como também às Assembleias Legislativas estaduais e às Câmaras de Vereadores (Municípios). O modo de satisfação de créditos judiciais contra as entidades da Federação, por exemplo, encontra regulação pormenorizada, sendo, volta e meia, objeto de reelaboração por emendas à Constituição.

A Constituição normatiza essas e outras áreas, porém, com termos vagos, de forma incompleta, fixando princípios suscetíveis de interpretações colidentes. A extensa área da vida jurídica trazida para a pauta constitucional somada à abertura hermenêutica propiciada pelas normas editadas já seriam fatores certos para gerar múltiplas questões passíveis de serem submetidas à jurisdição constitucional, especialmente no sistema abstrato.

A esses elementos de super-alimentação de causas, acrescente-se outro. Mesmo quando alguns institutos parecem encontrar uma inteligência razoavelmente firme, os desafios prosseguem, em virtude das inúmeras emendas à Constituição, que se sucedem a taxas de exótica rapidez. A Constituição de 5 de outubro de 1988 já recebeu até o momento em que este relato é escrito[4], 131 emendas[5], das mais variadas extensões e sobre os mais diversos assuntos. Novas controvérsias são assim estimuladas em alto grau.

Além disso tudo, o ajuizamento de ações de controle abstrato está franqueado a um considerável contingente de legitimados e não apresenta custo expressivo para o autor.

Não surpreende que tantas questões aportem ao STF todos os anos. O que talvez cause surpresa seja a impressionante taxa de êxito dessas ações.

De 348 ações de controle abstrato julgadas no seu mérito em 2021[6], nada menos do que em 260 houve juízo de procedência, o que corresponde a 75 % dos casos. Os assuntos mais frequentes tinham a ver com o sistema constitucional dos servidores públicos e direito tributário. Questões envolvendo o sistema constitucional do federalismo brasileiro também foram expressivas.

Uma só ação pode impugnar mais de uma norma, da mesma forma que pode haver mais de uma ação atacando uma mesma regra. Tendo isso presente, ainda assim desperta a atenção que de 169 leis estaduais desafiadas por instrumentos de controle abstrato, 129 foram julgadas inconstitucionais (76 % dos casos). 75 normas de Constituições estaduais foram arguidas de inválidas, com o resultado de procedência em 72 processos (96 % dos casos). De oito leis municipais apreciadas, 5 foram fulminadas. No plano federal, somente 3 medidas provisórias foram levadas a julgamento e todas foram declaradas válidas. Quanto a leis federais, das 68 julgadas, a metade foi declarada inconstitucional.

É interessante notar que também dispositivos de emendas à Constituição podem ser objeto de controle de constitucionalidade no Brasil, ao contrário do que ocorre em alguns outros sistemas. Em 2021, duas emendas foram examinadas quanto à sua validade, mas nenhuma foi declarada inconstitucional.

O legitimado que mais ajuizou ações dessa sorte foi o Procurador-Geral da República, 136 demandas, colhendo êxito em 119 delas (87,5 %).[7]

O maior número de processos julgados se deve substancialmente à adoção do mecanismo de plenário virtual. Além do plenário tradicional, com a presença física dos ministros na sala de julgamento, em 2021 foi vastamente utilizado o método de votação digital. Por essa fórmula, os integrantes do tribunal votam por sistema da internet nos processos que lhes ficam à disposição por período de 5 dias. Os tipicamente longos julgamentos no plenário físico, que se reúne duas vezes por semana, são consideravelmente abreviados. As sustentações orais de teses pelos advogados dos autores, pelo Procurador-Geral da República, pelos participantes do processo de formação da lei impugnada e pelos amici curiae, que podem ser muitos, são encaminhadas por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 horas antes de iniciado o julgamento no ambiente virtual. Essas sustentações, que podem tomar todo um dia de julgamento físico, não prolongam o julgamento virtual.

Por tudo isso, também, o Tribunal pôde registrar uma marca tão elevada de julgamentos.

Não sendo viável uma abordagem expositiva minimamente útil de todos os temas submetidos ao descortino da Corte em 2021, opto por centrar a resenha em casos relevantes envolvendo o direito fundamental da liberdade de expressão, que recebeu relevantes apreciações no ano.

I. LIBERDADE DE EXPRESSÃO[Subir]

O tema dos limites da liberdade de expressão está sempre sendo objeto de atenção. A Constituição brasileira assegura a livre expressão, independente de censura, mas também assegura o «direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem» (art. 5º, V).

Em 2009, lei de imprensa de 1967, que regulava todas as atividades de expressão jornalística e também o direito de resposta, foi julgada não recebida pelo sistema constitucional de 1988, em vigor[8]. A antiga lei de imprensa, Lei nº 5.250/67, fora editada num contexto histórico de exceção à normalidade democrática. A Corte viu no diploma motivação autoritária incompatível com o alargamento das franquias individuais operada pela ordem democrática de 88. Não chegou, entretanto, a examinar-lhe dispositivo por dispositivo. Uma nova lei sobre direito de resposta somente foi produzida em 2015 (Lei n. 13.188/15), o que não impediu que o direito de resposta fosse exercido até ali[9]. A lei de 2015 dispõe sobre o processo judicial para a imposição da pretensão de modo muito mais célere do que o procedimento comum do Código de Processo Civil e adota algumas soluções contidas na lei de 1967, tida como não recebida.

Entidades ligadas a órgãos de imprensa ajuizaram, então, três ações diretas de inconstitucionalidade, impugnando a rapidez imprimida aos processos de pedido de resposta, que consideraram incompatível com o direito de defesa e o devido processo legal. Insurgiram-se também contra preceito do diploma no que estabelece que a retratação ou retificação espontânea do veículo de comunicação social, mesmo que com «os mesmos destaques, publicidade, periodicidade e dimensão do agravo, não impede o exercício do direito de resposta pelo ofendido nem prejudica a ação de reparação por dano moral». Disseram que havia aí ônus excessivo para os órgãos de imprensa.

O Tribunal não enxergou inconstitucionalidade automática na adoção de medidas espelhadas na legislação de 1967, justamente porque, na ADPF 130, não houve análise de todos os artigos em face da Constituição de 1988. Ali houve, antes, uma compreensão global de que a inspiração do diploma editado durante o regime militar era incompatível com os valores da Constituição em vigor. No julgamento de 2009, foram derrubados todos os dispositivos da lei, mesmo que, em si, fossem compatíveis com a Constituição de 1988, sob o fundamento de que «a lei não poderia subsistir em fragmentos esparsos, sob pena de ferir a organicidade do direito».

O Tribunal não viu problema em o direito de resposta conviver com a imposição de compensação por danos morais, dada a natureza diferente dos fins dos institutos.

Quanto à norma que permite o direito de resposta mesmo tendo havido espontânea publicação de retificação pelo órgão de comunicação, a Corte tampouco flagrou inconstitucionalidade. Nesse ponto, deteve-se sobre a índole do direito constitucional de resposta, valendo-se também de ensinamentos da doutrina portuguesa. Abonou a lição do professor luso Vital Moreira, quando ensina que esse direito «traduz-se numa obrigação de publicação de textos alheios, independentemente da vontade do responsável pelo órgão de comunicação em causa». O direito de resposta configura uma forma de se estabelecer uma paridade de armas entre o indivíduo e o veículo de comunicação social, pressupondo a grande assimetria entre o ofensor e o ofendido, dado o enorme poder dos meios de comunicação. Em certa passagem, o Tribunal argumentou que «não se pode retirar do ofendido sua autonomia de verbalizar e veicular a resposta de acordo com a sua avaliação do dano, e não com a avaliação do veículo de comunicação».

Em outro momento, a Corte esclareceu que «a Constituição não traz outra hipótese ensejadora do exercício do referido direito [de resposta] senão a ocorrência de um agravo», com o que se exclui desse direito a pretensão de correção de informação ou opinião com a qual o autor não concorda, mas que não lhe é hostil à imagem ou à honra. Lê-se no acórdão:

O direito de resposta não se presta para impor uma visão de mundo sobre outra. (...) O fim a que se destina é a manifestação da pessoa do ofendido, pressupondo, portanto, uma ofensa, um agravo, um insulto à honra ou à imagem de alguém.

Quanto ao ônus gerado para as empresas de comunicação pelos prazos curtos para exercer a defesa, o argumento foi rejeitado, lembrando-se que, pelo desenho normativo do direito de resposta, antes de ajuizada a demanda, há uma fase extraprocessual indeclinável. O ofendido tem que se dirigir ao veículo de comunicação diretamente e instar a divulgação da resposta. Se não for atendido em 7 dias, só então surgirá o seu direito de agir, habilitando-o a requerer a medida em juízo. O órgão de imprensa deverá informar em 24h a razão de não haver publicado a resposta, dispondo de 3 dias para contestar.

De fato, os prazos são apertados, mas não inviáveis, como STF salientou, lembrando que antes de ingressar em juízo a empresa jornalística teve conhecimento do caso e pôde estudá-lo, na fase dita amigável. A Corte salientou que a natureza da ofensa cobra pronta retificação, sob pena de o público perder o interesse no assunto, depois de cristalizada a impressão desabonadora do retratado injuriosamente. A rememoração do evento depois de muito tempo pode, ainda, desservir ao intuito do direito de resposta. O Tribunal invocou aqui a necessidade de célere divulgação do pronunciamento do ofendido:

O exercício do direito de resposta é regido pelo princípio da imediatidade (ou da atualidade da resposta), o qual «obriga a publicação da resposta com a maior brevidade possível, de forma a garantir a sua utilidade comunicativa», assegurando que a resposta seja veiculada quando ainda presente o contexto que a ensejou.

Enfatizou que «por sua própria natureza, o direito de resposta precisa ser exercido em num contexto que permita o diálogo com a matéria que o ensejou». Acrescentou que «estamos a tratar de um procedimento cuja efetividade depende diretamente da celeridade da prestação jurisdicional».

O autor de uma das ações diretas também se insurgiu contra o estabelecimento, pela lei, do juízo do domicílio do ofendido ou, à sua escolha, do lugar onde o agravo apresentou maior repercussão, como competente para julgar o pedido de resposta. O autor disse haver aí «situação de franca vantagem processual» para o autor.

O STF rejeitou a arguição, novamente aqui invocando «a acentuada assimetria entre ofendido e ofensor, atuando esse direito como contrapeso, em favor do ofendido, ao grande poder de difusão que detêm os veículos de comunicação social e à impossibilidade de qualquer forma de controle prévio».

Como se nota, o argumento da assimetria foi decisivo para o julgado. Não se trata apenas de assimetria econômica, já que a internet abriu espaço para também os menos abonados se expressarem. Trata-se, mais do que isso, da questão da potencialidade de difusão da ofensa tornada infinita e atemporal justamente pelo fenômeno da internet.

*

É entendimento assentado no Brasil que as eleições, para serem verdadeiramente justas, não devem sofrer interferência do poder econômico que desequilibre as ações de convencimento dos candidatos junto aos eleitores. Esse foi o fundamento de decisão tomada por maioria, em julgamento de 7.10.2021[10], em que também se invocava o direito de liberdade de expressão artística em shows dedicados ao endosso de algum candidato. Na ADI 5.970, julgou-se constitucional dispositivo da Lei das Eleições que dispõe:

É proibida a realização de showmício e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral.

A norma se valeu de um neologismo, a palavra showmício, que designa um comício político realizado por meio de um show artístico. O artista e o candidato dividem o mesmo espaço com o objetivo de conquistar votos.

A busca de uma equanimidade possível entre os candidatos foi tida como prejudicada pelo poder econômico diferente de cada qual, levando a que alguns pudessem contratar músicos e bandas para animar o comício, enquanto a outros a opção estaria faticamente impossibilitada.

Não foi essa a primeira vez em que o Supremo Tribunal Federal confrontou a liberdade de expressão com particularidades do momento eleitoral. Em favor da liberdade de expressão, foi decidido, por exemplo, na ADI 3.741[11], ser inconstitucional regra de lei que que proibia a divulgação de pesquisas eleitorais a partir do décimo quinto dia anterior ao pleito eleitoral. A norma foi tida como restrição injustificada ao direito a informação, compreendido no amplo domínio da liberdade de expressão, sendo atentatória ao princípio da proporcionalidade, «quando confrontada com o objetivo colimado pela legislação eleitoral, que é, em última análise, permitir que o cidadão forme a sua convicção de modo mais amplo e livre possível, antes de concretizá-la nas urnas por meio do voto».

Já em outro julgado, agora versando a questão do balanço entre liberdade de expressão e os princípios eleitorais constitucionais, especialmente o da contenção do poder econômico nas eleições, o Supremo Tribunal fulminou dispositivos de lei que permitiam doação para campanhas realizadas por pessoas jurídicas[12]. Como as eleições constituem evento em que o cidadão é o protagonista, não existindo direito de voto de pessoa jurídica, entendeu-se que estas não poderiam participar do processo contribuindo pecuniariamente. O financiamento das campanhas deve ser público e por meio de doações de pessoas naturais. Rejeitou-se o argumento que equiparava a doação para campanhas a ato de manifestação de apoio, compreendido no âmbito da liberdade de expressão, de que empresas também são titulares, bem como os seus controladores. Buscou-se assegurar eleições menos sugestionadas por fatores de poder econômico[13].

Mas o quadro não seria outro quando os músicos, como pessoas físicas, se dispusessem a realizar esses shows sem pagamento, por adesão gratuita à candidatura de algum concorrente?

A questão nesse caso não era tão facilmente enfrentada com o argumento da tentativa de neutralizar o poder econômico diferenciado entre os candidatos. Os críticos da lei diziam que a proibição do showmício sem custos para o candidato revelava apenas «uma postura paternalista do Estado com o eleitor, impondo um ambiente eleitoral frio e asséptico».

O Tribunal viu, também nessas hipóteses, a possibilidade de se instalar um desequilíbrio entre candidatos a ser obviado. Na decisão, o Tribunal apontou que a gratuidade nos showmícios sem cachês era apenas aparente, já que se tratava de um serviço estimável em pecúnia. A Corte também assinalou haver modulações necessárias na liberdade de expressão, «no contexto político-eleitoral», ante a consideração de que «o destinatário último da troca de informações durante o período eleitoral é o cidadão eleitor, titular do direito ao voto, que deve ser exercido de forma livre e soberana».

O Tribunal deu ênfase ao aspecto de apelo a emoções menos do que à razão nos showmícios e advertiu que sugestões impróprias poderiam ser incutidas no eleitor. Disse que os showmícios podem fazer com que o eleitor associe «a presença do candidato e de suas ideias de campanha ao entretenimento e lazer proporcionado pelo artista aos eleitores em geral com o intuito de obtenção de votos». Isso seria contrário ao objetivo dos contatos do candidato com os eleitores, uma vez que, para o Tribunal, «o que se busca é munir o eleitor de informações sobre os potenciais representantes políticos do povo, para se proporcionar a ele uma tomada de decisão qualificada pelo acesso à informação».

Admitindo, que, na campanha, o fator emocional é relevante, o Tribunal parece ter querido dizer que, não obstante, isso não deve ser incentivado pelo meio do showmício, diante da sua maior influência sobre os eleitores, em desvio à finalidade que a Corte parece ter definido como sendo própria do comício. É o que se pode deduzir desses dois parágrafos do acórdão:

É notório que o período eleitoral exacerba emoções de todos os lados, o que é natural diante de um contexto no qual se busca fazer prevalecer, ao fim do certame, um dado projeto político sobre os demais, o que se dá não apenas pelo uso de argumentos racionais e calculados, mas também envolve uma conquista no campo emocional no intuito de despertar nos eleitores sentimentos como amor, ódio, admiração, repulsa, entusiasmo, nostalgia etc.

[...]

O que a norma em testilha objetiva evitar é que a opinião ou o sentimento que um eleitor venha a nutrir por um ou outro candidato sejam impulsionados pela reputação ou fama de um artista por meio da confusão entre o palco, do qual se busca deleite e lazer, e o palanque político, do qual devem emanar informações acerca da candidatura.

Nota-se que a argumentação enseja polêmica, mas foi a que prevaleceu. No acórdão, o Tribunal se demorou na defesa da tese de que não haveria no veto legal uma censura prévia, mas apenas uma restrição a modo de expressão do artista. De forma especialmente útil para balizar solução de problema eleitorais na campanha das eleições gerais de 2022, garantiu que os artistas são livres para, de qualquer outro modo, expressarem as suas convicções políticas. Daí haver explicitado que «da norma não se extrai impedimento para que um artista manifeste seu posicionamento político, incluindo-se o apoio explícito ou repúdio declarado a determinado candidato em seus shows ou em suas apresentações».

*

Outra decisão que obteve repercussão geral envolveu a questão de definir se é possível cogitar de um «direito ao esquecimento» como um direito fundamental do indivíduo. O tema é debatido em várias partes do globo, tornando intensa a expectativa pela orientação que ia ser dada pelo STF.

O caso[14] consistia em pedido de indenização pela ida ao ar, na rede aberta de televisão de maior audiência do país, de um programa em que se narrava, em forma teatralizada, o homicídio de uma jovem em 1958. Antes de morrer, a jovem fora brutalmente estuprada e seviciada. O crime, à época, provocara intensa cobertura da imprensa, que esquadrinhava cada passo das investigações e do processo, às custas de não menos intenso sofrimento para os familiares da vítima. Os familiares, autores da ação, diziam que, depois de tanto tempo, a dor estava amenizada, mas voltara a atazaná-los com a reportagem, 50 anos depois dos fatos, em que até imagens reais da vítima e dos familiares autores eram mostradas em rede nacional. Pediam o reconhecimento do direito ao esquecimento, o direito a não tornarem à dor de cinco décadas volvidas.

O caso ensejou votos cuidados, longos e de brilho, com estudos de direito comparado e exploração da dogmática dos direitos fundamentais, especialmente sobre a liberdade de expressão, na vertente do direito à informação, em confronto com direitos de personalidade dos autores. A polêmica foi lançada de modo mais atraente do ponto de vista doutrinário, porque o tribunal viu-se confrontado com a invocação do direito ao esquecimento, de que trataria pela primeira vez. Outro aspecto de interesse é que, ao contrário do que é mais comum, não era aqui o agente criminoso que se insurgia contra a divulgação do fato, mas a família da vítima.

O Tribunal assentou que não existe, nem expressamente na Constituição, nem na sua interpretação, um direito autônomo ao esquecimento. Lembrou que é comum na jurisprudência dos países, quando atenderam os efeitos pretendidos com o argumento do direito ao esquecimento, que as decisões terminassem por se remeter «ao livre desenvolvimento da personalidade, tais como: “proteção ao nome, à imagem ou a outra identificação dos perpetradores do crime”; “reabilitação ou socialização do apenado”; “criação de condições externas que evitem o descaso e a rejeição no meio ambiente”; “permissão do retorno ao caminho da retidão”; “ferimento à sensibilidade” “amplificação à exposição da privacidade” etc». Enfim, as controvérsias se resolviam, «na extensa maioria dos precedentes mais remotos, (...) com base em institutos já consolidados nos respectivos ordenamentos jurídicos».

O acórdão expôs que:

O que se invoca com o direito ao esquecimento é a proteção jurídica para impedir a divulgação de fatos ou dados verdadeiros licitamente obtidos, amparando-se na alegação, em essência, de que, pelo decurso do tempo, as informações de outrora não guardariam relevância jurídica, ao passo que sua ocultação (ou ocultação dos elementos pessoais dos envolvidos) melhor serviria aos propósitos constitucionais, sobretudo à proteção dos direitos da personalidade.

Para a Corte, por isso, não existiria um direito autônomo ao esquecimento, mas situações especiais em que o decurso do tempo pode levar a que outros direitos fundamentais —de proteção da personalidade sobretudo— prevaleçam sobre o direito de informar. De toda forma, segundo a Corte, «a passagem do tempo, por si só, não tem o condão de transmutar a condição de uma publicação ou um dado nela contido de lícita para ilícita». O Tribunal voltou a afirmar que, não obstante a centralidade da liberdade de expressão no sistema constitucional democrático, essa liberdade, «deve ser exercida em harmonia com os demais direitos e valores constitucionais».

Recordou precedente outro do Supremo Tribunal, em que se disse que a liberdade de expressão «representa tanto o direito de não ser arbitrariamente privado ou impedido de manifestar seu próprio pensamento quanto o direito coletivo de receber informações e de conhecer a expressão do pensamento alheio»[15]. Entendeu que o conflito entre a pretensão de ser deixado em paz e a liberdade de expressão, «não se faz apenas entre o interesse do comunicante, de um lado, e o do indivíduo que pretende ver tornados privados dados ou fatos de sua vida, de outro. Envolve toda a coletividade, que poderá ser privada de conhecer os fatos em toda a sua amplitude». Em linha de princípio, disse o Tribunal, «ninguém é obrigado a se desfazer de seu direito à informação para permitir a terceiros uma vida livre do conhecimento de seus erros passados».

Afinal, o STF formulou esta tese:

É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais —especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral— e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.

*

Com relação à liberdade de expressão, aqui sob o ângulo da liberdade de imprensa, o Tribunal julgou outro caso que mobilizou a atenção geral[16].

Durante uma manifestação que interrompera o acesso a ponto importante da cidade de São Paulo, um fotógrafo jornalista cobria o acontecimento. Os ânimos se exaltaram sobretudo quando a polícia chegou. Na confusão que se instalou, o jornalista acabou por receber um tiro perdido de bala de borracha no olho, partido um agente policial, o que resultou na perda de 90 % da visão desse olho e na impossibilidade de continuar a exercer a profissão de fotógrafo. Invocando a responsabilidade civil do Estado, pediu indenização.

A responsabilidade civil do Estado, no Brasil, fica excluída se se demonstra que o dano se deveu à culpa exclusiva do indivíduo. A decisão que o STF apreciou no recurso a ele dirigido afirmara presente essa culpa do fotógrafo, dizendo que, se permanecera no palco dos conflitos, assumira o risco de ser ferido.

A decisão recorrida foi revertida no Supremo Tribunal. Concordou-se com o parecer do Procurador-Geral da República no sentido de que “é obrigação do Estado, responsável direto pela conduta de seus agentes, garantir os direitos fundamentais de segurança, de reunião sem armas, de informação e de liberdade de expressão e de imprensa”.

Mais ainda, foi dito que não há falar em culpa do jornalista que está desempenhando a missão de informar-se para informar, especialmente porque não transgredira nenhuma ordem da polícia de não permanecer naquela área. Daí o acórdão assinalar que estava «em jogo o direito ao exercício profissional, bem como o direito-dever de informar —artigos 5o, incisos IX, XIII e XIV, e 220 da Constituição Federal—».

Enfatizou-se que:

A vítima estava no local exercendo a sua profissão de repórter fotográfico; a vítima foi surpreendida, assim como os demais, com a ocorrência do tumulto; a vítima não estava em um local de acesso proibido, estava no local da manifestação; a vítima não invadiu um local que anteriormente, por exemplo, a polícia tivesse barrado. Não! A vítima estava realizando, dentro do exercício da sua profissão, sua atividade jornalística.

A questão foi pautada então pela incidência do direito de informar, como vertente da liberdade de expressão. Esse foi o raciocínio que orientou a solução:

Ora, se a Suprema Corte vier a reconhecer que um jornalista que esteja, de forma legítima, realizando uma cobertura de uma manifestação social, política, exercício de direito de reunião, e que venha a ser ferido por atuação do Estado tão somente por estar exercendo sua profissão não tem direito à indenização, porque trata-se de culpa exclusiva da vítima, estaríamos cerceando o próprio exercício da liberdade de imprensa e, lato sensu, da própria liberdade de expressão.

O acórdão que assinalou consequências relevantes para a liberdade de imprensa também no campo da responsabilidade civil do Estado em situações de violência pública, fixou, afinal, esta tese:

É objetiva a Responsabilidade Civil do Estado em relação a profissional da imprensa ferido por agentes policiais durante cobertura jornalística, em manifestações em que haja tumulto ou conflitos entre policiais e manifestantes. Cabe a excludente da responsabilidade da culpa exclusiva da vítima, nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas, em que haja grave risco à sua integridade física.

II. CONCLUSÃO[Subir]

No ano imediatamente anterior das eleições gerais no Brasil, que prometem ser acirradas em termos de críticas e manifestações públicas, o Supremo Tribunal Federal produziu decisões de especial interesse para a compreensão de aspectos relevantes da liberdade de expressão. São decisões que marcaram a jurisprudência no ano de 2021 e que expandirão os seus efeitos em anos vindouros.

NOTAS[Subir]

[1]

Doutor em Direito (Universidade de Brasília). Professor de Direito Constitucional no IDP/Brasília. Membro do Ministério Público Federal. Atual Vice-Procurador-Geral Eleitoral.

[2]

Analisada em artigo do mesmo autor no número do ano passado desta revista.

[3]

O STF detém também competência para desatar controvérsias havidas em outros tribunais de ordem constitucional, além de resolver pedidos de habeas corpus e de mandado de segurança em que altas autoridades da República ou tribunais superiores figuram como coatores. Igualmente é competente para recurso em habeas corpus e recurso em mandado de segurança julgados por tribunais superiores.

[4]

11 de setembro de 2022.

[5]

125 emendas decorrentes do poder constituinte de reforma e 6, do poder constituinte de revisão, que se reuniu uma só vez, em 1994.

[6]

O total das analisadas foi de 369, mas em 21 delas, por conta de fatores processuais, não houve juízo de mérito.

[7]

O Procurador-Geral da República é, desde 2019, o constitucionalista Antônio Augusto Brandão de Aras.

[8]

ADPF 130, DJe de 6.11.2009.

[9]

Na ADPF 130, o Tribunal assegurou que a norma da Constituição instituidora do direito de resposta é autoaplicável, sem prejuízo de regulamentação legislativa.

[10]

ADI 5.970.

[11]

DJe de 23.2.2007.

[12]

ADI 4.650 (DJe 24.2.2016).

[13]

Foi argumentado que «o princípio da liberdade de expressão assume, no aspecto político, uma dimensão instrumental ou acessória, no sentido de estimular a ampliação do debate público, de sorte a permitir que os indivíduos tomem contato com diferentes plataformas e projetos políticos. A doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, antes de refletir eventuais preferências políticas, denota um agir estratégico destes grandes doadores, no afã de estreitar suas relações com o poder público, em pactos, muitas vezes, desprovidos de espírito republicano».

[14]

RE-RG 1010606, julgado em 11.2.2021.

[15]

ADI nº 2.566, Rel. p/ o ac. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe de 23/10/18.

[16]

RE 1.209.429/SP, julgada em 10.6.2021.