O mais notável fato sócio-jurídico-político de 2022 para o Brasil foram as eleições gerais ocorridas, em primeiro turno, em 2 de outubro e, em segundo turno, no dia 30 do mesmo mês. Foram escolhidos representantes para órgãos legislativos estaduais e federais, além de governadores de Estado e Presidente da República.
A disputa presidencial foi travada aguerridamente entre os dois principais candidatos, o Presidente da República Jair Bolsonaro, identificado com a direita, que concorria à reeleição, e Lula da Silva, candidato do partido identificado com a esquerda, que já governara o país, por dois mandatos, na primeira década do século. A rivalidade entre os dois principais candidatos à Chefia do Executivo Federal galvanizou as atenções e polarizou a sociedade.
Afinal, venceu o postulante Lula da Silva pela mais apertada margem de votos de todas as eleições do país. No segundo turno, obteve 50,9 % dos votos, contra 49,1 % de Jair Bolsonaro. Em termos numéricos, houve uma diferença de 2,13 milhões de votos (60,3 milhões contra 58,2 milhões).
O ambiente político esteve particularmente tenso durante a campanha. Houve o esperado copioso recurso à internet, sobretudo às redes sociais, e esteve sempre presente o risco de as fake news viciarem a vontade dos eleitores. Acusações com palavras duras marcaram as referências recíprocas entre os candidatos. Até mesmo ataques, ainda que não fundamentados, foram endereçados, pelo candidato que estava no poder, à Justiça eleitoral e ao sistema de votação digital, que desde 1996 foi adotado no país.
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Neste ponto, convém dar breve notícia ao leitor não brasileiro sobre o sistema eleitoral no país. Há 91 anos, foi instituída a Justiça Eleitoral, como um dos ramos do Judiciário. A essa Justiça incumbe organizar as eleições, inclusive expedindo normas que as regulem, respeitados parâmetros legais. A ela é dado registrar partidos e candidatos, e julgar controvérsias que venham a ser suscitadas. Não só a Constituição, mas também leis diversas, que costumam ser emendadas com apertada frequência, e muitas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) compõem um alentado volume de preceitos reitores das competições pelo voto popular.
A Justiça Eleitoral é integrada por membros das magistraturas estaduais e federal, que nela desempenham, por período certo, suas funções, de modo concomitante com as habituais permanentes. Na segunda instância, há 27 Tribunais Regionais Eleitorais, um em cada unidade da Federação. O Tribunal Superior Eleitoral encabeça a estrutura desse ramo do Judiciário, nele se concentrando as apurações do sufrágio.
Junto à primeira instância, atua o Promotor eleitoral, que pertence à carreira do Ministério Público dos Estados; na segunda instância, o representante do parquet é membro do Ministério Público Federal. No TSE, o Ministério Público Eleitoral é representado pelo Procurador-Geral da República, que também é o Procurador-Geral Eleitoral. O Vice-Procurador-Geral Eleitoral funciona perante a Corte, por delegação do titular. Nos Tribunais Regionais Eleitorais e no TSE dois dos sete magistrados da Corte não provêm da carreira da magistratura, mas são juristas, escolhidos, a partir de lista elaborada pelos tribunais, pelo Presidente da República, para um mandato de dois anos.
A campanha eleitoral no Brasil é custeada por recursos públicos e a Justiça Eleitoral desempenha a missão de aferir a regularidade do seu emprego pelos partidos e candidatos. Da mesma forma, a Constituição prevê quota de pelo menos 30 % de candidaturas femininas por cada partido e verbas para viabilizá-las. A satisfação dessas obrigações é dos assuntos mais relevantes da pauta de deliberações da Justiça Eleitoral.
O voto no Brasil é obrigatório, um dever constitucional, não obstante sempre se registrar um certo percentual de eleitores que não acorrem às urnas. O total de pessoas aptas para votar em 2022 atingiu o portentoso número de mais de 156 milhões de cidadãos (156 854 011). Não obstante esse expressivo número de eleitores, no mesmo dia em que as eleições ocorreram, a apuração eletrônica dos votos permitiu ao TSE proclamar os resultados finais das eleições em todos os seus níveis, um feito sem igual nas democracias contemporâneas, em especial nas mais populosas.
O sistema eleitoral brasileiro não corresponde a um modelo mais comum em outros países. A competência para julgar questões, normatizar aspectos da realização do sufrágio e levá-lo a cabo por meio de medidas de ordem administrativa pode surpreender o observador estrangeiro. Várias organizações e observadores internacionais costumam ser atraídos ao país para acompanhar o processo eleitoral; nestas últimas eleições, foram numerosas as entidades de fiscalização convidadas e interessadas, que estiveram no país e puderam seguir de perto o funcionamento do sistema, na própria sede do TSE, em Brasília, e em vários pontos de votação. Todos puderam atestar a lisura e a correção do processo. Desde que o sistema de votação em urna digital foi posto em prática, não se flagrou nenhuma fraude. No ano de 2022, o resultado não foi diferente.
Recentemente, o Diretor-executivo do movimento Transparência Partidária anotou que «o modelo brasileiro é efetivamente singular na perspectiva comparada, mas é possível dizer que se trata de uma inovação em geral bem-sucedida». Representante da Transparência Internacional testemnhou, nessa linha, que «a Justiça Eleitoral desempenha um papel fundamental na preservação da democracia brasileira». Esse, efetivamente, é o sentir dos que se detêm no funcionamento do sistema eleitoral[2] e é também a percepção do Ministério Público Eleitoral.
Isso não obstante, no plano da disputa presidencial, o candidato à reeleição e pessoas com ele politicamente identificadas manifestaram publicamente desconfiança sobre a confiabilidade das assim chamadas «urnas eletrônicas», suscitando dúvidas sobre a segurança do processo. Todas as críticas foram rebatidas oficialmente. Todas as questões técnicas foram respondidas. O Tribunal chegou a criar uma Comissão composta por especialistas, professores da área de informática, representantes de entidades fiscalizadoras da sociedade civil, das Forças Armadas, Polícia Federal e do Ministério Público Eleitoral, para avaliar a confiabilidade do sistema. As críticas não se confirmaram, mas a difusão de insinuações e de matérias já vencidas na sua verossimilhança não cessou, prosseguindo em período próximo às eleições e acarretando suspeitas sem fundamento sobre a legitimidade do procedimento eleitoral. O TSE também abriu o código fonte para qualquer interessado que se propusesse a verificar a sua consistência. Houve testes públicos de integridade das urnas e do sistema. As acusações desfundamentadas e respondidas oficialmente, sem contrarrazões aceitáveis, passaram a ser vistas pelo TSE como casos de fake news, de disseminação de notícias falsas.
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Práticas de desinformação sobre variados aspectos de interesse eleitoral se avolumaram no período de 45 dias antecedente às eleições em primeiro turno, tempo legal da propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. Da mesma forma, as afirmações de cunho eleitoral falsas ganharam vulto nas redes sociais. Isso levou o TSE a expedir resolução, no dia 20 de outubro de 2022, com o intuito de coibir a prática deletéria, que resistia aos procedimentos comuns de controle.
No ato de regulação, previu-se que o TSE poderia determinar às plataformas a imediata remoção da página (URL, URI ou URN) em que se inseria a matéria maliciosa, sob pena de multa por hora de descumprimento, quando se verificasse «a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos».
Visando à agilização, incumbiu-se a Presidência do Tribunal de determinar a extensão da decisão colegiada «para outras situações com idênticos conteúdos», autorizando a suspensão temporária de perfis que se dedicassem «à produção sistemática de desinformação». A previsão buscou responder ao desafio da imediata multiplicação de fake news em inúmeras outras bases, tão logo é publicada numa primeira vez.
A resolução expressou audaz medida de contenção do fenômeno, que se agudizava, da disseminação de informações enganosas, denunciadas em outras eleições no país e em outros Estados democráticos. Sabe-se das consequências indesejáveis de radicalização e de perda de percepção da realidade que o alastramento da prática provocou em outras ocasiões e em várias latitudes do mundo democrático. Não obstante a propensão das principais plataformas digitais para colaborar com o TSE com vistas a sustar esses desvios, expressa em reuniões dos seus dirigentes nacionais com a cúpula do TSE e do Ministério Público Eleitoral, providências mais expeditas e eficazes se mostraram urgentes, ante até mesmo a experiência vivida durante a campanha anterior ao primeiro turno. A Resolução buscava prevenir impropriedades na campanha do segundo turno, que já estava em curso.
Logo que publicada, a Resolução atraiu o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Arguiu-se que o ato normativo havia invadido competência legislativa da União, teria instituído hipótese de censura prévia (ao admitir a suspensão de perfis de redes sociais) e desatendido à garantia da liberdade de expressão. Argumentou-se que o STF decidira em 2018 que «o direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. (…) Mesmo as declarações errôneas estão sob a guarda dessa garantia constitucional»[3]. Sustentou-se também ser inconstitucional a atuação da Presidência de ofício, sem provocação de partes do processo eleitoral ou do parquet.
O pedido de concessão de liminar para sustar a Resolução do TSE de imediato foi indeferido pelo relator, que, logo em seguida, encaminhou a sua deliberação ao referendo do Plenário do Supremo Tribunal. A cautelar foi afinal indeferida por maioria de votos, com exame pormenorizado das questões de mérito envolvidas. A ementa do julgamento da ADI 7.261 MC-Ref, julgada em 26 de outubro de 2022, resumiu assim o voto do relator, que prevaleceu contra dois votos que viam inconstitucionalidade na Resolução TSE 23.714/2022:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. CONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO TSE Nº. 23.714/2022. ENFRENTAMENTO DA DESINFORMAÇÃO CAPAZ DE ATINGIR A INTEGRIDADE DO PROCESSO ELEITORAL. 1. Não se reveste de fumus boni iuris a alegação de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao exercer a sua atribuição de elaboração normativa e o poder de polícia em relação à propaganda eleitoral, usurpa a competência legislativa da União, porquanto a Justiça Especializada vem tratando da temática do combate à desinformação por meio de reiterados precedentes jurisprudenciais e atos normativos, editados ao longo dos últimos anos. 2. A Resolução TSE nº. 23.714/2022 não consiste em exercício de censura prévia. 3. A disseminação de notícias falsas, no curto prazo do processo eleitoral, pode ter a força de ocupar todo espaço público, restringindo a circulação de ideias e o livre exercício do direito à informação. 4. O fenômeno da desinformação veiculada por meio da internet, caso não fiscalizado pela autoridade eleitoral, tem o condão de restringir a formação livre e consciente da vontade do eleitor. 5. Ausentes elementos que, nesta fase processual, conduzam à decretação de inconstitucionalidade da norma impugnada, há que se adotar atitude de deferência em relação à competência do Tribunal Superior Eleitoral de organização e condução das eleições gerais. 6. Medida cautelar indeferida.
O STF concordou com a postura que animou a edição da Resolução combativa da difusão maliciosa de notícias falsas, na medida em que possa interferir no processo eleitoral, desnorteando a formação criteriosa da vontade do eleitor. A manipulação do eleitor com base em conteúdo sabidamente falso ou descontextualizado foi vista como atentado à normalidade democrática. O voto condutor do acórdão assinalou que «o TSE não inovou na esfera jurídica ao punir quem deliberadamente utiliza-se do recurso às fake news». Referiu-se a decisão do STF no mesmo ano de 2022, resumindo-a dizendo que, ali, o Supremo Tribunal «decretou que não existe um tal direito fundamental de propagar notícia falsa ou coisa que o valha».
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Efetivamente, na TPA MC 39[4], outro precedente de fundamental importância formado em 2022, a Corte Suprema foi inequívoca ao afirmar que:
A Constituição de 1988 constituiu um regime democrático robusto, no qual deve haver ampla participação, debates robustos de ideias, de dissensos e de deliberação. Em tal regime é de responsabilidade de todos os cidadãos, e, sobretudo, dos agentes públicos, zelarem pela efetiva promoção de uma sociedade, como prevista na Constituição, livre, justa e solidária. Nesta sociedade, desenhada pela Constituição, o amplo exercício das liberdades constitucionais deve ser sempre levada a efeito com a responsabilidade, como, aliás, deve ser em uma República.
[…]
Às vezes é necessário repetir o óbvio, não existe direito fundamental a atacar à democracia a pretexto de se exercer qualquer liberdade, especialmente a liberdade de expressão. A lealdade à Constituição e ao regime democrático é devida a todos, sobretudo aos agentes públicos que só podem agir respeitando-a. Não se deve confundir o livre debate público de ideias e a livre disputa eleitoral com a autorização para disseminar desinformação, preconceitos e ataques à democracia.
O STF apreciava, no caso, crítica a decisão do TSE que havia cassado o mandato de Deputado estadual que realizara live pela internet, afirmando que as urnas eletrônicas estavam concebidas para facilitar fraudes, que ele exemplificava, retirando, dessa forma, credibilidade do sistema de votação e de apuração eletrônico adotado. As acusações não tinham embasamento e os exemplos eram inidôneos. Além disso, foram disparadas no próprio dia das eleições, o que até inviabilizava uma resposta. O Tribunal Eleitoral, então, valendo-se de dispositivo de lei que prevê a perda do registro do candidato que usa indevidamente «veículos ou meios de comunicação social» (art. 22, XVI, da Lei Complementar 64/1990), aplicou-lhe a sanção. O STF aderiu ao juízo do TSE, assinalando que:
O discurso de ataque sistemático à confiabilidade das urnas eletrônicas, mais notadamente no dia das eleições, não pode ser enquadrado como tolerável em um Estado democrático de Direito, no qual se propugna o sufrágio universal pelo voto direto e secreto como direito fundamental qualificado como cláusula pétrea, especialmente por um pretendente a cargo político com larga votação para a disputa de deputado. […] Afinal, sem um processo de eleição existente e válido, não há que se cogitar em legitimidade do pleito.
O propósito enxergado de tentar «minar a credibilidade das urnas eletrônicas, no dia das eleições» foi qualificado como sendo «de extrema gravidade e se volta contra o mais caro em uma Democracia: o pacto social da confiança no resultado das eleições […], repercutindo nas bases da Democracia».
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O precedente de junho de 2022 (a TPA MC 39) servia, assim, em outubro do mesmo ano, na ADI 7261, para afastar o argumento de que não haveria fundamento legal para medidas de repúdio às fake news que sejam aptas para abalar a normalidade do processo eleitoral.
Entendeu-se que o abuso que a Resolução do TSE buscava coarctar era de especial gravidade, não se confundindo com ilícitos eleitorais mais corriqueiros e de mais reduzida nocividade. Por isso, lê-se no acórdão que «não se trata de discurso de campanha ou de simples propaganda irregular, para os quais há direito de resposta, mas sim de verdadeiro abuso de poder, que pode ser acionado de modo massivo e anonimizado».
O acórdão na ADI 7261 também assinalou que a competência normativa do TSE é admitida constitucionalmente[5]. Foi enfatizado, paralelamente, que o Tribunal Eleitoral desempenha função de poder de polícia, na medida em que a ele incumbem providências administrativas de realização material das eleições segundo os planos do constituinte de instaurar um Estado democrático de Direito. Daí lhe caber adotar medidas, sponte sua, para assegurar esse fim, i. é, medidas de poder de polícia, as quais os interessados sempre poderiam contestar num processo judicial.
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O acórdão na ADI 7261 reiterou outros pronunciamentos da Suprema Corte no próprio ano de 2022, em que se afirmou que a liberdade de expressão não consiste num direito absoluto, mas que deve se conciliar com outros princípios e direitos fundamentais.
De fato, em 16 de fevereiro de 2022, o Supremo Tribunal julgou ação direta de inconstitucionalidade de especial relevância para o desenho do sistema eleitoral sob o prisma dos limites da liberdade de expressão. Na ADI 6281[6], o Tribunal foi confrontado com crítica lançada pela Associação Nacional de Jornais contra norma legal limitadora de propaganda eleitoral paga em jornais[7]. O tema da liberdade de expressão foi suscitado. Afinal, prevaleceu a inteligência de que:
A mens legis do art. 43, caput, da Lei Eleitoral, identifica-se substancialmente com os propósitos de baratear a propaganda eleitoral e dar alguma concretude ao princípio da paridade de armas.
Nos periódicos impressos, individualmente considerados, permite-se que cada candidato veicule dez vezes sua propaganda eleitoral, em generosos espaços que correspondem a um oitavo de página, se jornal, ou um quarto, se revista ou tabloide, até a antevéspera das eleições.
Portanto, nas restrições impostas pelo dispositivo legal, não diviso mínimo menoscabo às liberdades de expressão, de imprensa e de informação (CF, arts. 5o, IV, IX, XIV, e 220, caput, §§ 1o, 2o e 3o).
Para além de jornais, revistas e tabloides impressos, os candidatos dispõem de um vasto rol de instrumentos a serem utilizados para divulgar suas ideias e propostas, os quais, na prática, têm sido preferidos.
Por isso se pode ver, claramente, que as restrições impostas pelo art. 43, caput, da Lei Eleitoral, não significam qualquer embaraço à liberdade de expressão dos candidatos a cargos eletivos.
Também aos veículos de imprensa não se sonega liberdade de expressão, absolutamente.
A propaganda eleitoral, por natureza, presta-se a disseminar tão só as virtudes autodeclaradas por aqueles que disputam a predileção do eleitorado, com o objetivo de conquistar cargos políticos nos Poderes Executivo e Legislativo. Não se trata, pois, de local destinado ao debate político propriamente dito, ao confronto de ideias e muito menos à divulgação de informações isentas. Diferentemente, no espaço de propaganda a ser vendido para os candidatos, não é dado ao veículo de imprensa emitir qualquer opinião ou noticiar qualquer fato, ainda que verdadeiro, capaz de desprestigiar o anunciante. Em verdade, nesse caso, o espaço de propaganda eleitoral representa um produto a ser vendido aos partidos políticos e aos candidatos. Assim sendo, não há nenhuma relação entre ele e a atividade jornalística, que se deve desdobrar na divulgação de fatos verdadeiros e na emissão de opiniões sinceras e isentas, dentro dos limites legais.
Por essas razões, descabe cogitar que a norma impugnada possa empobrecer o debate político ou comprometer o fact-checking, destinado a evitar que notícias falsas contaminem o sufrágio popular. Resultam incólumes, portanto, os postulados da liberdade de expressão, de imprensa e de informação.
Na ADI 6.281, portanto, o STF admitiu que a legislação limitasse a manifestação do candidato em matéria paga de jornal. Distinguiu um domínio normativo da liberdade de expressão menos largo para a propaganda eleitoral, na medida em que conferiu peso significativo ao princípio, sempre prestigiado na jurisprudência brasileira, da igualdade econômica de oportunidades dos que disputam o voto dos cidadãos. Mesmo assim, a lei não chegou a impedir integralmente a propaganda em jornais, buscando, antes, um equilíbrio com os interesses que limitou. Da mesma forma, o Tribunal observou que a mensagem que o candidato deseja passar aos eleitores não ficou inviabilizada pela limitação à sua forma, já que outros meios de acesso ao público não ficaram inviabilizados.
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O precedente conferiu alento ao juízo de conformação com a Constituição da Resolução do TSE, objeto da citada ADI 7.261 MC-Ref. A restrição à liberdade de comunicação ali cogitada foi dada como legítima, uma vez que se mostrou «pontual e excepcional (…) na seara eleitoral, especialmente com a finalidade de compatibilizá-la com outras disposições constitucionais».
O Tribunal realizou um distinguishing com relação ao que fora julgado, em 21.6.2018, na ADI 4.451. No julgado mais antigo, afirmou-se inconstitucional norma que proibia as emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, de «usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito». Em 2018, afirmou-se que:
O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias.
Em 2022, o Tribunal tratou de outra realidade. Não impediu as manifestações de humor e de opiniões impopulares, mas condenou as empulhações, o artifício de suscitar a impressão de ser verdade o que sabe não o ser. Em voto que compôs a corrente vencedora, lê-se o esclarecimento de que, no acórdão de 2018, não fora «jamais assentada a inconstitucionalidade de norma que impossibilitava a divulgação de notícias aparentemente verdadeira, mas que, por meios tecnológicos, eram adulteradas, de modo a veicularem conteúdo absolutamente inverídico».
O atuante controle de postagens que a Resolução do TSE propiciou consistiu em eficiente contenção de fake news em eleições que se prenunciavam como campo de multiplicação funesta do fenômeno.
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Em outra frente de costumeiros abusos eleitorais, o STF endossou medidas de rigor tomadas pelo TSE para reagir a fraudes à cota de gênero estabelecida pela legislação.
Diversos casos apreciados pela Corte eleitoral expunham a prática de alguns partidos políticos de burlar a regra de que 30 % das candidaturas a cargos de representação parlamentar devem ser do gênero feminino. Não raro, em algumas agremiações políticas, se observou que, ao longo da campanha política, as candidatas não realizavam atos de busca de votos e até mesmo se dedicavam a promover candidatos do sexo masculino. Por vezes, abandonavam a candidatura sem motivo e não eram substituídas, não movimentavam recursos financeiros para a propaganda e terminavam com votação pífia, ou sem receber nenhum voto das urnas —portanto, nem sequer votando em si próprias. Percebia-se que o registro dessas candidatas visava tão-somente a incutir a impressão —falsa— de que o partido estava cumprindo o propósito do legislador de assegurar a participação feminina efetiva no processo eleitoral. A Justiça Eleitoral enxergou no estratagema hipótese de fraude à lei que impõe a cota em favor da inserção das mulheres na vida política. A consequência para essa prática foi extraída de dispositivos legais[8], conduzindo à perda do mandato de todos os eleitos pelo partido em que a fraude ocorrera, bem como à inelegibilidade temporária dos diretamente envolvidos no esquema, o que alcançava as próprias mulheres que aceitaram ceder o nome para a candidatura fictícia.
Foi proposta ação direta de inconstitucionalidade contra os dispositivos legais que embasavam essas deliberações. Na ADI 6338[9], o STF se alinhou com os vários precedentes de 2022 do TSE, reafirmando a correção da leitura feita pelo tribunal eleitoral das normas examinadas. O Supremo Tribunal foi enfático:
Fraudar a cota de gênero — consubstanciada no lançamento fictício de candidaturas femininas, ou seja, são incluídos, na lista de candidatos dos partidos, nomes de mulheres tão somente para preencher o mínimo de 30 % (trinta por cento), sem o empreendimento de atos de campanhas, arrecadação de recursos, dentre outros — materializa conduta transgressora da cidadania (CF, art. 1o, II), do pluralismo político (CF, art. 1o, V), da isonomia (CF, art. 5o, I).
O acórdão coletou dados expressivos da falta de inclusão feminina nas casas legislativas, para assinalar, não somente a necessidade de ações afirmativas de ordem legislativa, como também a premência no rigor da implementação real dessas providências:
Segundo os dados disponibilizados pela Inter-Parlamentary Union, em dezembro de 2022, o Brasil ocupava a 129a (centésima vigésima nona) posição no ranking de mulheres no parlamento do total de 187 (cento e oitenta e sete) países avaliados.
2.1. Na América do Sul, o Brasil, nos termos do relatório divulgado pela Inter-Parlamentary Union, só fica à frente do Paraguai (131o). Se considerarmos a América Central e a a América do Norte, só ficamos à frente de Belize (156o), de Antígua e Barbuda (160o) e de Santa Lúcia (160o).
2.2. Os números assustam e revelam que, apesar de uma pequena e gradual evolução nos últimos anos, a participação feminina na política ainda se mostra aquém do desejável, sendo necessário uma atuação mais energética do Estado para atingir melhores níveis de paridade entre os gêneros.
Afinal, o Supremo Tribunal assegurou que a interpretação e aplicação dos dispositivos de lei pela Justiça Eleitoral vencia os testes do princípio da proporcionalidade, por ser:
(i) adequada, porquanto apta punir todos os envolvidos nas práticas fraudulentas, bem como extirpar do ordenamento jurídico os efeitos decorrentes dos atos abusivos, mediante a cassação do registro ou do diploma de todos que deles se beneficiaram; (ii) necessária para evitar a contumaz recalcitrância das agremiações partidárias no adimplemento da ação afirmativa (cota de gênero) instituída pelo legislador, de modo a transformar as condutas eleitorais, incentivando, efetivamente, a participação feminina na política; (iii) proporcional em sentido estrito, tendo em vista que, ao contrário do sustentado, não acarreta desestímulo para participação do pleito e incentiva os partidos a fomentarem, a desenvolverem e a integrarem a participação feminina na política.
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O esforço do STF por assegurar eleições com a participação mais intensa de todas as camadas sociais ganhou expressão no julgamento da ADPF MC-ED-Ref 1.013[10].
O acórdão arrolou vários dados estatísticos sobre a evolução dos níveis de pobreza no Brasil, remarcando que um em cada três brasileiros vivia, em 2021, em estado de pobreza, o que seria fator dissuasivo para que se animassem a pagar pelo transporte público, no dia das eleições, e exercer o direito, que também é dever no país, de votar nos seus representantes. O acórdão mostrou-se impressionado com a taxa de não comparecimento às urnas no primeiro turno das eleições de 2022 de 20,9 % dos eleitores habilitados. Comparou a taxa de abstenção dos eleitores analfabetos, de 52,8 %, com a dos que possuem ensino superior completo de 11,85 %. Argumentou que «a ausência de política pública de concessão de transporte gratuito no dia do pleito tem potencial para criar, na prática, um novo tipo de voto censitário, que retira dos mais pobres a possibilidade de participar do processo eleitoral». Determinou, então, aos Municípios que já possuíam anteriormente programa de transporte público gratuito a todos que o mantivessem, de modo obrigatório, para o segundo turno das eleições de 2022, a fim de evitar retrocesso. Assegurou, ainda, aos demais gestores municipais que desejassem implantar a medida que não estrariam cometendo ilícito eleitoral, administrativo, civil ou penal de nenhuma espécie, porque estariam agindo para «garantir as condições materiais necessárias para o pleno exercício do sufrágio ativo».
Houve quem visse na decisão providência que beneficiaria o candidato da esquerda à Presidência da República. Os números obtidos depois do segundo turno, porém, mostraram que houve pouca diferença nos índices de abstenção em seguida à decisão tomada pelo STF. Se no primeiro turno a abstenção foi de 20,95 %, significando que 32 770 982 eleitores cadastrados (156 854 011) deixaram de votar, no segundo turno o índice foi de 20,58 %, significando que, do total de eleitores cadastrados, 32 200 558 não compareceram às seções eleitorais. Se no primeiro turno 3 301 872 eleitores analfabetos não votaram, a redução desse número para 3 129 711 não apresenta relevo em termos numéricos tão impactantes.
A decisão do STF, não obstante, apontou para aspecto de relevo no mapa dos direitos fundamentais carentes de medidas concretas para a sua plena eficácia. Serviu também para exemplificar a importância que o tema da garantia do exercício do direito de voto efetivamente livre e consciente assumiu na pauta de julgamentos da Suprema Corte em 2022.
[1] |
Doutor em Direito (Universidade de Brasília). Professor de Direito Constitucional no IDP/Brasília. Membro do Ministério Público Federal. Atual Vice-Procurador-Geral Eleitoral. |
[2] | |
[3] |
ADI 4.451, julgamento em 21 de junho de 2018. |
[4] |
TPA MC 39, DJ, Redator do Acórdão, Ministro Edson Fachin, julgado em 7 de junho de 2022. |
[5] |
Em voto vogal, foi dito: «o poder normativo atribuído ao Tribunal Superior Eleitoral pelo Código Eleitoral, com fundamento no art. 121 da Constituição da República, consiste em instrumento para que dele lance mão o órgão disciplinador do processo eleitoral na consecução das finalidades, objetivos e princípios expressos na Constituição da República e na legislação de regência». |
[6] |
DJe 26.5.2022. |
[7] |
Um dos dispositivos impugnados estabelece: «São permitidas, até a antevéspera das eleições, a divulgação paga, na imprensa escrita, e a reprodução na internet do jornal impresso, de até 10 (dez) anúncios de propaganda eleitoral, por veículo, em datas diversas, para cada candidato, no espaço máximo, por edição, de 1/8 (um oitavo) de página de jornal padrão e de 1/4 (um quarto) de página de revista ou tabloide» (art. 43 da Lei n. Lei n. 9.504/97). |
[8] |
Art. 10, § 3o, da Lei n. 9.504/1997 e art. 22, XIV, da Lei Complementar nº 64/1990. |
[9] |
Julgada, afinal, em 3 de abril de 2023. |
[10] |
Julgada em 20.10.2022. |